O número de casos de transtornos alimentares na adolescência cresceu significativamente nos últimos anos. Eles estão ligados a fatores genéticos, neurológicos e psicossociais, segundo especialistas. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que cerca de 10% dos adolescentes por todo mundo são afetados por distúrbios alimentares.
“Existem muitos fatores que podem estar resultando neste aumento do número de casos, mas acredito que os principais sejam: rígidos padrões de beleza, redes sociais e até gatilhos psicológicos, como separação dos pais, bullying, perdas familiares”, explica Thais Mussi, endocrinologista e metabologista da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
Entre os transtornos mais observados estão a bulimia e a anorexia. O transtorno alimentar restritivo evitativo, que leva à restrição de comida por motivos diversos, apesar de menos conhecido, também vem se tornando cada vez mais frequente.
A endocrinologista pediátrica e metabologista Paula Pires afirma que todo transtorno alimentar é reflexo de uma relação conturbada com os alimentos, com o ato de comer e até mesmo com o corpo. “As pessoas com transtornos alimentares têm uma relação diferente com a comida. Podem sentir ansiedade, culpa, angústia. Em alguns casos se sentem deprimidos.”
Pesquisa realizada no Royal Children’s Hospital, clínica localizada em Melbourne, Austrália, especializada no tratamento de transtornos alimentares, apontou um aumento de 63% na procura de tratamento para distúrbios alimentares entre os anos de 2017 e 2020. A maioria dos pacientes são jovens de 9 a 18 anos, sendo 80% mulheres.
Tipos de transtornos alimentares
Anorexia
Anorexia é a restrição de ingestão calórica que leva uma pessoa a um peso menor que o recomendado. Ela é acompanhada por medo intenso de ganho de peso, com uma percepção distorcida da imagem corporal. Dessa maneira, a pessoa se enxerga acima do peso, com proporções corporais diferentes da realidade.
Seus principais sintomas são: emagrecimento excessivo, falta de apetite, grande preocupação com dietas, restrição alimentar (principalmente em quantidade), medo de engordar e uso de truques para mostrar que já comeu, quando na realidade não fez isso.
“Como consequência, vemos crianças e adolescentes extremamente emagrecidos, com sinais de desnutrição como pele seca, queda de cabelos, unhas quebradiças. Meninas que já apresentaram a menarca podem parar de menstruar. Costumam ter alto conhecimento do valor calórico de todos os alimentos”, relata a pediatra e hebiatra Andrea Hercowitz, membro do Departamento de Adolescência da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
Bulimia
No caso da bulimia, o paciente se alimenta exageradamente, consumindo diversos tipos de alimentos de forma descontrolada. Os episódios de descontrole são seguidos pelo sentimento de culpa, o que faz com que, na tentativa de evitar o ganho de peso, o indivíduo recorra ao uso de laxantes, prática excessiva de esportes ou até vômitos forçados.
A bulimia é acompanhada por variações de peso (ganho ou perda), desmaios e tonturas, intolerância a certos alimentos, inchaço e constipação intestinal, hemorroidas e complicações orais por vômito forçado. Entre as mulheres, é comum que aconteçam alterações no ciclo menstrual.
“Quem é pai e já passou por isso, sabe que é uma situação muito dolorida. Demorei muito tempo pra entender o que se passava com minha filha. Eu tinha certa desconfiança, percebia que ela sempre ia logo ao banheiro depois de uma refeição, mas preferi acreditar que não era o que estava pensando. Minha filha sempre esteve um pouco acima do peso, mas a adolescência e o uso de redes sociais, onde ela constantemente se comparava com outras mulheres, tornou a situação bem mais complicada. A bulimia é um problema sério, deve ser tratado com diversos especialistas e também conversado” relatou um pai, sob a condição de anonimato, à Canguru News.
De acordo com a psicóloga Gabriela Henke, a bulimia é acompanhada pelo sentimento de culpa. “Mediante ao ato de comer demais, a pessoa se culpa. Ela quer externalizar essa culpa, purgar essa culpa. Isso pode acontecer por meio do vômito, do uso de laxantes.”
Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE)
O TARE é visto desde a infância e incide até a vida adulta. Ele é caracterizado pela rejeição da comida por diversos motivos, entre eles a cor, textura, sensação ao mastigar, temperatura, paladar e falta de apetite. O indivíduo apresenta uma aversão ao novo, o que se chama de neofobia. A neofobia é caracterizada pela resistência individual em experimentar alimentos diferentes do padrão habitual de consumo.
“Diferentemente da anorexia, na qual as pessoas não comem para emagrecer, as crianças e adolescentes com TARE são magros porque não gostam de comer ou são muito restritivos com relação ao que comem. Além dos riscos de desnutrição ou carência alimentar, [o transtorno] acarreta problemas sociais, pois a criança/adolescente não gosta de quase nada do que lhe é oferecido”, explica a médica Andrea Hercowitz.
Telas e redes sociais potencializam riscos
Crianças entre 9 e 10 anos que passam muito tempo em frente às telas — seja de celulares, computadores ou TV — apresentam maior risco de desenvolverem compulsão alimentar periódica um ano depois, aponta um estudo realizado pela Universidade de Toronto feito em conjunto com a Universidade da Califórnia.
O estudo aponta que cada hora que os menores gastam nas redes sociais aumenta em 62% o risco de desenvolverem um transtorno alimentar um ano depois. Os pesquisadores analisaram dados de 11.025 crianças que fazem parte do Estudo de Desenvolvimento Cognitivo do Cérebro Adolescente, a maior pesquisa de longo prazo sobre o desenvolvimento do cérebro já feita nos Estados Unidos.
O uso das redes sociais está diretamente relacionado aos quadros de transtorno.
“Na medida em que as redes sociais valorizam os corpos magros e os associam com a beleza e o sucesso, elas podem facilitar o desencadeamento dos transtornos. Além disso, imagens de corpos extremamente magros, seja naturalmente ou modificados através de tecnologia digital, são idealizadas por crianças e adolescentes que não têm a percepção de sua alteração de imagem e/ou da doença associada a eles”, ressalta a hebiatra Andrea Hercowitz.
“Além disso, nas redes sociais são facilmente encontradas dicas de dietas rígidas, exercícios intensos, com objetivo de emagrecimento. Existem inclusive canais de dicas para pessoas com distúrbios alimentares, estimulando comportamentos que agravam a doença”, completa.
A psicóloga Gabriela Henke enfatiza que, desde a infância, elevados padrões estéticos são impostos às mulheres, o que pode propiciar o desenvolvimento de distúrbios alimentares. “Vivemos em uma sociedade onde padrões estéticos inalcançáveis são impostos, o que faz com que as mulheres tenham uma insatisfação muito grande com seus corpos. Essa insatisfação faz com que a indústria lucre, vendendo cintas, gel emagrecedores, laxante. São padrões que acabam corroborando para que a pessoa desenvolva algum tipo de transtorno alimentar. Precisamos desconstruir a imagem de que o magro é feliz, de que o gordo é feio.”
Tratamento envolve vários especialistas e família
O tratamento para casos de transtornos alimentares envolve uma equipe multidisciplinar com médicos, psicólogos e nutricionistas. “É necessário muitas vezes remédio para melhorar a saúde mental, assim como terapia e seguimento de nutrição comportamental para melhorar a relação com a comida”, afirma a endocrinologista Paula Pires.
O acompanhamento familiar também é essencial. De acordo com Andrea Hercowitz, os pais devem evitar atitudes compensatórias relacionadas à comida e à perda de peso. “Os pais devem organizar e acompanhar as refeições de acordo com a orientação da equipe, evitar atitudes compensatórias para perda de peso. É preciso muita paciência, compreensão e cuidado para ajudar os filhos. Os parentes precisam entender que não é uma opção da pessoa e sim uma doença. Que não basta colocar um prato na frente e mandar comer.”
Segundo a endocrinologista, o acompanhamento deve ser familiar e minucioso. “Os adolescentes aprendem e se espelham no comportamento dos pais. Então, concluindo, a obesidade infantil, o comer emocional e a compulsão alimentar em crianças e adolescentes fazem parte de um diagnóstico familiar e o tratamento da família toda é fundamental”, complementa Paula Pires.
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