MEC recolhe 93 mil exemplares de livro infantil que aborda o incesto

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    Por Cristina Moreno de Castro

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    MEC decidiu recolher livro | Foto: Reprodução

    O Ministério da Educação (MEC) decidiu pôr fim a uma polêmica acerca do livro infantil “Enquanto o Sono Não Vem“, do ator, diretor, cantor e contador de histórias carioca José Mauro Brant. A obra suscitou questionamentos de professores e pais de alunos por abordar em um de seus contos o tema incesto, e por ser distribuída a crianças de 7 a 8 anos, todas alunas do segundo e terceiro ano do ensino fundamental em escolas públicas do país. A solução encontrada pelo ministro Mendonça Filho foi recolher todos os 93 mil exemplares do livro das escolas públicas de ensino fundamental e redistribuí-los para bibliotecas públicas de todo o país.

    O ministro se baseou em parecer técnico da Secretaria de Educação Básica (SEB), que considera a obra não adequada para crianças dessa faixa etária por causa do conto “A triste história de Eredegalda”, que fala do desejo de um rei em se casar com a mais bonita de suas três filhas. Diante da negativa, a menina é castigada e termina morrendo de sede. Segundo o parecer, “as crianças no ciclo de alfabetização, por serem leitores em formação e com vivências limitadas, ainda não adquiriram autonomia, maturidade e senso crítico para problematizar determinados temas com alta densidade, como é o caso da história em questão”.

    O autor da obra, José Mauro Brant, ficou sabendo da decisão do MEC pela reportagem da Canguru. Ele se expressou com pesar: “É a crise da inteligência. O Brasil está acéfalo e vive uma crise moral grande. Acho uma pena que isso resvale num projeto tão sério e espero que isso não sirva como desestímulo para os políticos continuarem investindo em boa e variada literatura.” 

    Leia AQUI a entrevista completa com José Mauro Brant.

    José Mauro disse que já narrou esse conto popular para crianças de 6 anos e que ele aparece em diversos outros livros, por fazer parte da tradição de contos populares do país, que ele se dedica a pesquisar. “Acho que pode ser trabalhado para essa idade, mas exige uma visão menos moralista e mais preparo para isso. Do jeito que nossa educação está, acho que deveria ser reclassificado para a partir de 8 ou 10 anos.”

    A editora Rocco, que publicou o livro “Enquanto o Sono Não Vem”, informou que ele “faz parte de uma coleção com nove livros, chamada E quem quiser que conte outra, que reúne recontos de histórias populares. A escolha de todas as histórias, em todos os livros dessa coleção, é justificada e explicada ao final do volume, com uma nota sobre a origem da narrativa e as versões que ela ganhou através dos séculos.”

    A explicação do conto “A triste história de Ederegalda” publicada no livro é a seguinte:

    “O romance é uma forma de poesia popular cantada que, em verses, sempre conta uma história. Num tempo em que a escrita era para muito poucos, a música escrevia na memória dos trovadores e menestréis os feitos heroicos e as histórias trágicas de reinos imaginários. Muitas vezes tiveram origem em fatos reais, e os cantadores, que eram os repórteres da época,  levavam as histórias para as praças e salões da Europa medieval. Os romances foram trazidos pelos colonizadores portugueses e espanhóis e até hoje sobrevivem na memória das velhas romanceiras nordestinas. A história da princesa assediada pelo próprio pai aparece em vários lugares do Brasil com nomes diferentes: “Silvaninha”, “Valdomira”, “Faustina”. A versão aqui incluída foi inspirada em uma recolhida em Barbacena, Minas Gerais, e foi acrescida dos versos de um acalanto denominado ‘Lá vem vindo um anjo’.”

     

    UFMG defende a obra

    O livro, publicado em 2003, foi comprado pelo governo federal, através do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), em 2005 (gestão Lula) e em 2014 (gestão Dilma). Antes de ser selecionado pelo MEC, ele foi avaliado por uma equipe composta por doutores e mestres especialistas do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

    Após a polêmica recente, a diretoria do Ceale, da UFMG, emitiu, na semana passada, no dia 1º de junho, uma nota técnica defendendo a escolha do livro como instrumento paradidático nas escolas. Confira os principais trechos [os grifos são da Canguru]:

    “No caso específico do romance ‘A triste história de Eredegalda’ tematiza-se o incesto. Aparentemente, alguns leitores desavisados consideraram que, por conta dessa temática, a narrativa seria inadequada para crianças. O mesmo pode acontecer com o tema do sequestro, presente na narrativa ‘Canta, canta meu surrão’. Trata-se, em ambos os casos, de um julgamento indevido construído por leitura equivocada do romance, do reconto, da tradição oral e do lugar da literatura na formação da criança, como explicitaremos a seguir. Em primeiro lugar, o fato de uma obra tematizar incesto, como é o caso de ‘A triste história de Eredegalda’ não quer dizer que faça apologia do incesto, ou seja, não é o tema que aborda, mas a maneira como o faz que deve ser considerado pelo leitor. Nesse sentido, é importante lembrar que temas como estupro, pedofilia, fratricídios, violência, alcoolismo, sequestro e incesto, por exemplo, estão tematicamente presentes até na Bíblia. Além disso, como já apontado em sua óbvia ligação com o conto Pele de Asno, de Perrault, trata-se de um tema que há muito se faz presente na literatura infantil, e não deveria causar, portanto, nenhuma surpresa a professores que trabalham com a formação de leitores infantis. O modo atemporal como se constrói a narrativa cria um distanciamento do presente e uma imersão no universo da ficção. Não se pode esquecer que as ilustrações, além do texto, levam para o universo dos contos de fada. Leitores de literatura infantil que já vivenciaram experiências de leitura com narrativas semelhantes entram nesse universo com esta condição: a de leitores de ficção.

    (…)

    é preciso entender que um dos efeitos do texto literário sobre os leitores é o que desde os gregos antigos se chama de catarse. Trata-se de um fenômeno peculiar que hoje se diria de transferência psicológica, isto é, a leitura de uma cena violenta serve para purgar o impulso de violência. Dizendo com outras palavras, todo ser humano possui raiva, medo, angústia, inveja e outros tantos sentimentos tidos como negativos ao lado dos positivos. Ao vê-los representados no texto, o leitor os vivencia vicariamente, ou seja, por empréstimo, e assim também se liberta deles. É porque o leitor vivencia esses sentimentos negativos nos livros, nos filmes, nas telenovelas que não precisa trazê-los para a vida real.

    No caso das crianças, essa vivência do texto literário é ainda mais fundamental porque elas estão aprendendo a lidar com todos esses sentimentos e muitas vezes eles lhes surgem contraditórios, gerando confusão em suas cabeças. É por isso que a matéria básica da literatura infantil, desde os tempos imemoriais, é justamente composta dos medos, das angústias e das dores que implicam em crescer. Assim, ao ser desobediente com Chapeuzinho Vermelho, a criança aprende a lidar com os limites impostos pelos adultos. Ao espetar o dedo em um fuso e dormir por cem anos, ela compreende melhor os riscos da curiosidade. Ao sofrer com a condição de Mariazinha, no conto “Canta, canta, meu surrão”, vivencia o risco de se aproximar de estranhos, longe dos adultos. Desse modo, bem distante do pressuposto da emulação, ou seja, a ideia ingênua de que a criança simplesmente imita o que leu, a verdade é que ela usa a fantasia para aprender a lidar com seus sentimentos. Não é porque as crianças se regozijam com a cena em que o lobo mau é impiedosamente estripado para retirar da sua barriga a vovozinha que elas vão passar a maltratar os animais. Ao contrário, cenas como essas servem para que as crianças canalizem e controlem sentimentos que são reprimidos socialmente na sua casa e na escola. Ao jogar a bruxa na panela de água fervente com Joãozinho e Maria, por exemplo, as crianças experimentam simbolicamente o sentimento de vingança. Dizendo de outra maneira, a ficção proporciona à criança um ambiente seguro onde ela pode expressar e experienciar sentimentos que nem saberia explicar. O medo irracional que uma criança pode sentir de perder os pais é mais fácil de lidar após ela viver a história cruel de Joãozinho e Maria que são abandonados pelos pais na floresta, mas voltam tranquilos para casa.

    As cenas de violência que se fazem presentes nessas histórias são partes constitutivas delas e as crianças certamente as compreendem dessa maneira. A história de Sherazade não seria a mesma sem o risco de ser decapitada e essa informação é fundamental para a narrativa causar o seu efeito. A história de Branca de Neve teria um impacto muito menor se a madrasta não exigisse que fosse morta e seu assassino trouxesse o coração como prova. De outra forma, o tratamento do tema agrega, por vezes, um traço de humor, como se pode verificar no final do conto “Canta, canta meu surrão”, que faz parte da obra comentada nesta nota. Nesse sentido, não são as cenas de violência presentes nessas e em outras histórias infantis que devem preocupar pais e educadores, mas sim a gratuidade delas como acontece em algumas narrativas até menos explícitas, porque isso as impede de exercer a função sublimadora que se destacou acima.

    Também não é negando ou escondendo a existência de violência no mundo que se ajuda o leitor a transformá-lo em lugar melhor para se viver. Assim como uma criança precisa brincar livremente em uma praia e caminhar na areia do parquinho até para ganhar resistência contra as bactérias e micróbios que vivem nesses ambientes, ela também precisa experimentar e conhecer, ainda que simbolicamente, os perigos e as adversidades que temperam o caráter. Dessa maneira, ao ler com seus alunos “A triste história de Eredegalda” ou “Canta, canta, meu surrão” e os demais recontos que compõem o livro em questão, um professor cumpre o papel formador de lhes mostrar o mundo por meio da tradição popular ao mesmo tempo que vazado em uma linguagem acessível ao imaginário infantil. É essa uma das razões da leitura literária na escola.”

     

    * Reportagem atualizada às 17h30

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