O Ministério da Educação passou a defender, com base nas declarações recentes do ministro Milton Ribeiro, um modelo de educação para alunos com deficiência baseado nas escolas e turmas especiais, proposta retomada pelo Decreto 10.502/20, do governo federal. A visão do atual governo é considerada retrógrada por especialistas e organizações que defendem os direitos de inclusão nas escolas de crianças e adolescentes com deficiência. Para esses especialistas, a visão do ministro se confronta com a perspectiva inclusiva implementada no país desde 2008.
O decreto federal foi apelidado de “Decreto da Exclusão” por organizações do setor. A norma está suspensa, por liminar. Nos dias 23 e 24 de agosto, uma audiência pública ocorreu no Supremo Tribunal Federal para ampliar o debate sobre a constitucionalidade do decreto. Ele segue suspenso até decisão conclusiva da Corte.
A Canguru News selecionou três histórias de crianças com deficiência e ouviu a visão dos pais e da comunidade escolar sobre a educação inclusiva, que é combatida pelo ministro. Para essas famílias, professores e organizações que trabalham em favor da inclusão, essa atual visão do MEC joga por terra a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, de 2008, que é o modelo vigente e seguido pelos profissionais da educação no país. Essa política trouxe uma série de incentivos e políticas públicas em prol da matrícula de alunos com deficiência nas escolas e classes regulares. Ferramentas como o Atendimento Educacional Especializado (AEE) surgiram nesse contexto, visando fornecer um olhar individualizado a cada aluno com deficiência ou transtorno e formular estratégias para desenvolvimento de mais autonomia, orientação e mobilidade dessas crianças.
As histórias de Lucca, Davi e Isabela, além de vários estudos de caso realizados pelo Instituto Rodrigo Mendes, são alguns exemplos de como é possível desenvolver metodologias e planos de ensino que promovam a inclusão em escolas regulares com êxito, trazendo benefícios para as crianças, pais, educadores e demais alunos – sem “atrapalhar”.
Modelo fracassado de “classes segregadas”
Rodrigo Hübner Mendes, presidente do Instituto Rodrigo Mendes, explica que o modelo de classes exclusivas e segregadas, como o defendido por Milton Ribeiro, era o modelo predominante antes da política de 2008. “Eram ou instituições ou salas de aula dentro de uma escola comum, das quais participavam somente alunos do público-alvo da educação especial.” Mas, ao longo dos anos, as classes segregadas evidenciaram uma série de problemas: “Foi se percebendo que os resultados eram muito limitados, esse modelo se mostrou fracassado pelo baixo nível de desenvolvimento, pela falta de autonomia observada pelas crianças que passaram por esse ambiente, e ao mesmo tempo pela constatação de que estar em convívio com as demais crianças e adolescentes é um direito que precisa ser garantido também para esse público. Ou seja, aquele modelo feria esse direito.”
“Todas as pesquisas e observações de resultados da prática levam a gente a perceber que estar em contato, em interação, usufruindo da experiência de ser desafiado num ambiente de diversidade, é um elemento imprescindível para que o aluno tenha a chance de alcançar o seu melhor e explorar o seu potencial”, pontua Rodrigo Mendes. “Nesse sentido, o modelo da educação segregada não garante essa possibilidade. E daí a importância de pensar em políticas públicas, investimentos, ações relacionadas à transformação da rede de ensino de maneira que toda criança e adolescente com deficiência frequente esse ambiente e, com isso, possa desenvolver habilidades decisivas para a construção de autonomia, como a capacidade de comunicação mais ampla, de se colocar no lugar do outro, de favorecer cooperação, mediar conflitos e assim por diante”.
Frases polêmicas do ministro Milton Ribeiro reacenderam esse debate, nas últimas semanas. Ribeiro sustenta que crianças com deficiência “atrapalham” o aprendizado dos colegas, e que a convivência delas com as outras crianças é inviável: “Nós temos, hoje, 1,3 milhão de crianças com deficiência que estudam nas escolas públicas. Desse total, 12% têm um grau de deficiência que é impossível a convivência”, ele afirmou em coletiva.
O ministro usa o termo “inclusivismo” para se referir à presença de crianças com deficiência nas escolas regulares que fazem a inclusão. Entretanto, a palavra não é utilizada nos debates sobre educação inclusiva, e vem, na verdade, da teologia, o que, segundo especialistas da área, reforça um discurso crítico de Milton Ribeiro à inclusão.
De acordo com dados gerais sobre a educação especial fornecidos pelo INEP, relativos a 2019, 87,2% das matrículas do público-alvo dessa educação foram realizadas em classes comuns, com cerca de 13% apenas em escolas e classes exclusivas.
Hoje, vários casos de escolas públicas e privadas regulares no país demonstram trabalhos efetivos de inclusão de alunos da educação especial.
A história de Lucca: atenção e apoio da turma
Lucca Scatolin Fraga, de 9 anos, possui TEA (Transtorno do Espectro Autista) e era aluno de uma Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). No início de 2020, começou a estudar em uma turma regular no Mackenzie. Mesmo com a interferência da pandemia, sua mãe, Ana Scatolin, diz que o filho teve uma adaptação excelente. “Eu não imagino o Lucca em outra escola na pandemia, porque eles foram muito atenciosos, sempre com muito apoio, incluindo ele. As pessoas que trabalham nessa parte de inclusão estão muito engajadas”.
Neste ano, com o retorno das aulas presenciais, Ana já observou impactos positivos da mudança do filho para uma classe regular: “Imaginamos que essa volta ao presencial seria muito complicada, e ele levou numa boa. Até então, ele nunca quis se incluir com as meninas, tinha uma rejeição, e desde que voltou, ele brinca normalmente com elas”, diz.
Além de ter superado as barreiras de interação com as meninas, Ana diz que Lucca possui uma relação muito boa com os colegas: “A inclusão dele na sala de aula foi muito boa, apesar do TEA, ele é muito querido pelos alunos. Ele tem uma ecolalia, que é um barulhinho que ele faz, e a gente se preocupou se atrapalhava. A escola disse que nunca houve uma reclamação do Lucca, nem pelos pais, nem pelas crianças. Elas gostam muito dele.”
Apesar de receber alunos com deficiência há anos, o Mackenzie não tinha um programa concreto para eles. Até que, em 2019, surgiu o PROINC, o Programa Mackenzie de Inclusão, hoje coordenado pela especialista Telma Portugal.
“Por meio desse programa, o aluno tem todas as adaptações conforme a necessidade dele. Não é pelo laudo que fazemos as adaptações, mas de acordo com as necessidades daquele aluno. Pois muitas vezes eles precisam de desafios diferentes”, diz Telma.
Segundo ela, esse trabalho para incluir os alunos com deficiência envolve a ação tanto dos educadores, quanto da classe: “Os professores da sala de aula precisam observar, cuidar para que as crianças estejam envolvidas na aula, estejam incluídas. Eles precisam de conhecimento o tempo todo, e são formas diferentes de dar aula, de apresentar conteúdo e avaliar. Isso instiga e desafia muito os profissionais da escola. Os outros alunos tem que entender o que está acontecendo com aquela criança para que eles possam incluí-la de fato, então trabalhamos com a classe também”
Com esse trabalho, crianças como Lucca podem se relacionar com o ambiente escolar e com os colegas de forma verdadeiramente inclusiva. “Eles convivem de uma forma adequada, conseguem prestar atenção e não são atrapalhados ou incomodados”, comenta a especialista.
A história de Davi: adaptação do espaço físico e dos colegas
“Tudo que é proposto para a turma, o Davi consegue ser contemplado, porque tudo é pensado pra ele também”, diz Nivia Carvalho, uma das diretoras do Instituto Lagarta Vira Pupa e mãe de Davi, de 8 anos. Na Zona Leste de São Paulo, Davi cursa o 3° ano do ensino fundamental na EMEF Achilles de Oliveira Ribeiro, e o uso da cadeira de rodas, assim como outras necessidades de adaptação devido à paralisia cerebral, não foram problema para sua vivência no ambiente escolar.
Davi fez a educação infantil na EMEI Jardim Imperador, e de lá foi transferido para a EMEF Achilles para o ensino fundamental. Nessa primeira experiência na escola, ainda na EMEI, Nivia diz que a condição do filho despertava curiosidade nas crianças, mas descreve uma ótima relação com os colegas no ambiente escolar. “A turma acolheu o Davi de uma forma muito carinhosa”.Ele ficou dois anos nessa EMEI e houve um vínculo muito forte das famílias com o Davi.”
A fácil adaptação e inclusão de Davi, segundo Nivia, ocorreu em âmbitos diversos, tanto na sala de aula, com os colegas e atividades, quanto no espaço físico das escolas. “As duas são acessíveis, o EMEI tinha elevador, o pátio era bem grande, tinha o trocador e os banheiros eram adaptados para cadeirantes. A escola que ele estuda hoje é térrea, ele tem acesso a todos os espaços, área de plantio, horta. Em 2019 houve o arraiá e ele participou, dançou a festa junina”.
A história de Isabela: participação, dança e progresso
Com 4 anos de idade, Isabela Oweis frequenta a Educação Infantil na escola Janela Para O Talento, no bairro Granja Viana, em São Paulo. Belinha, como é chamada pela mãe, possui a Síndrome de Rubinstein-Taybi, uma alteração genética rara e pouco conhecida.
Christiane Oweis, mãe da aluna, relata que ficou apreensiva com a adaptação da filha caçula, por ser atípica e não falar como as outras crianças. Entretanto, dentre seus três filhos, a de Isabela foi a mais fácil: “Ela começou em fevereiro de 2020, e foi uma adaptação muito tranquila. Entrou, me deu tchau e ficou. Ela ama de paixão ir para a escola, é muito carinhosa e querida pelos coleguinhas”.
Isabela continuou o contato com a escola após o início das aulas remotas em 2020. Para ela, as aulas eram ministradas três vezes por semana, durante um período de meia hora e de forma adaptada. “Ela teve ganhos muito significativos”, diz Christiane.
Desde março deste ano, a Janela Para O Talento retornou às aulas presenciais, e Isabela retomou o convívio com a sala de aula. Segundo Christiane, a filha acompanha muito bem as atividades escolares, e recebe as adaptações necessárias para seu aprendizado. “Ela faz o pedagógico igual ao da turma, o que tem às vezes são pequenas adaptações de como vão passar o conteúdo pra ela. Se a turma está estudando sobre o tempo, ela também vai estudar sobre o tempo, mas com uma forma de abordagem um pouco diferente”.
Além de acompanhar o âmbito pedagógico, Isabela também participa dos eventos e atividades propostas na escola com os outros colegas. Para a mãe, ver a filha na apresentação de dia dos pais foi um marco: “Ela participou, dançou, e foi muito bonito, porque por mais que ela não estivesse dançando, cantando como a turma dela, em razão dos atrasos, ela participou muito bem, da maneira dela, e ficou muito feliz. Eu vi o quanto a gente já caminhou até aqui, quanto ela ganhou, quanto progresso a gente já teve. E isso só me dá mais certeza do futuro brilhante que ela vai ter, vai ser sempre muito amada e estimulada”.
Para a mãe de Belinha, os benefícios da filha e de outras crianças com deficiência ou transtorno estudarem em uma escola regular, que promovam a inclusão, se refletem tanto para ela, quanto para os outros colegas:
“Para a criança atípica é benéfico porque ela vai conviver com crianças típicas, que vão estimular cada vez mais o aprendizado dela. Ela vai ter modelos reais, efetivos, para que cada vez mais se desenvolva e se torne a melhor versão que ela puder ser. Para as crianças típicas, vai ser excelente o convívio com a diversidade. Fará com que elas sejam seres humanos melhores, muito mais empáticos, com muito mais sabedoria para conviver e saber lidar com as diferenças”.
A perspectiva das escola com inclusão
De acordo com dados do INEP obtidos pelo Censo Escolar da Educação Básica de 2020, 42,24% das mais de 210.000 matrículas escolares de alunos com deficiência no estado de São Paulo foram feitas em escolas municipais, como as frequentadas por Davi. O número já representa um aumento em relação ao Censo de 2019, no qual, das 174.363 matrículas, 40,99% foram na rede municipal.
Alessandra Reis Nunes é professora da sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE) da EMEF Achilles, e ressalta que ações formativas junto aos docentes e demais servidores da escola, além de adaptações da própria estrutura da instituição, são essenciais para realizar uma inclusão efetiva para os alunos: “A condição não o determina, mas a maneira como o ambiente se organiza ou não determina se ele consegue participar ou não”.
“Temos instituído na Rede Municipal de Ensino de São Paulo um horário semanal de estudo e planejamento, tanto coletivo como individual, além das formações continuadas mensais e cursos de capacitação que a rede vem promovendo, tendo em vista o aumento da demanda com a procura cada vez maior por matrícula na rede pública e regular de ensino pelas famílias das pessoas com deficiência, público da Educação Especial”, comenta Alessandra.
Para ela, trabalhar junto ao AEE, oferecer escuta e apoio às famílias e eliminar as barreiras de acesso das crianças ao currículo é uma grande conquista rumo à uma educação com inclusão mais efetiva. “A importância para nossos estudantes e suas famílias de estarem na escola pública, regular e que vem perseguindo o ideal de inclusão é o de existir para o mundo. De serem respeitados, de serem enxergados, valorizados, legitimados, de serem finalmente consideradas suas necessidades sem precisarem negar sua condição numa tentativa de normalizar as diferenças. Somos diferentes e precisamos mudar a maneira como a sociedade pensa e se organiza. Se não for bom para todos, não serve a ninguém.”
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