Por Rafaela Matias

“Criança tem é que brincar”. “Elas precisam estudar para garantir um futuro”. “Quanto mais cedo aprenderem a ter disciplina, melhor”. “Na minha época não tinha nada disso”. O que não faltam são crenças, opiniões, conselhos e movimentos a favor e contra a famigerada lição de casa. Apesar de ser motivo de debate em todo o mundo, há pouco consenso a respeito. No pódio de campeões de ensino em quase todas as pesquisas sobre educação mundial – como o índice global publicado pela ONU –, a Finlândia é um dos países responsáveis por arraigar a discussão. Por lá, as crianças entram para a escola aos 7 anos e só começam a receber lições de casa por volta dos 16, como aponta a OECD (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), responsável por coordenar o PISA (Programme for International Student Assessment), uma rede que avalia o desempenho escolar em vários países. Em 2012, o então presidente francês François Hollande defendeu o fim das atividades e também intensificou os questionamentos, afirmando que as tarefas deveriam ser feitas em sala de aula e que os pais não teriam tempo para acompanhá-las em casa.
Mesmo assim, o dever continua sendo uma realidade em quase todos os países do mundo. No Brasil não é diferente. Embora não exista uma determinação oficial do governo federal, as lições de casa são amplamente adotadas tanto na rede pública quanto nas escolas particulares e constituem uma das principais pontes na relação família-escola. Para Tatiana Camargos Lamego, especialista em neuroeducação pela Universidade Estácio de Sá do Rio de Janeiro e voluntária na Associação Educore – Movimento Pedagogicamente Responsável, o dever de casa assume um papel importante no Brasil e sua função aqui não deve ser comparada à desempenhada em outros países. “Se a criança está na escola só em um turno, será que ela vai ter criatividade em um contexto de cidades grandes e apartamentos para criar atividades construtivas durante todo o outro período? Isso pode até funcionar em países onde as praças são bem-estruturadas e a segurança pública permite passear livremente, mas acho que, no contexto brasileiro, o dever tem mais vantagens do que desvantagens”, defende ela, acrescentando que as lições constituem uma das atividades capazes de ocupar o tempo livre e canalizar as energias com algo útil e construtivo.

do dever para associá-lo a uma atividade prazerosa | Foto: Carlos Hauck
A especialista também é diretora da Bem Família Tutoria, projeto especializado em acompanhamento escolar e cursos de incentivo ao ler, ao escrever e ao estudar (conheça mais projetos e ferramentas que facilitam a hora do dever no quadro ao final da reportagem), e explica que uma rotina de estudos não precisa ser sacrificante e pode ser introduzida de forma prazerosa na vida da criança. Um dos pequenos acompanhados por ela, Theo de Melo Araújo, de 7 anos, descobriu isso. Com dislalia – mesmo distúrbio que faz com que o personagem Cebolinha, da Turma da Mônica, troque os sons das letras “r” e “l” –, o pequeno passou por uma série de dificuldades antes de ser diagnosticado e precisou de ajuda para criar sua rotina de estudos. Com acompanhamento de uma fonoaudióloga e duas professoras particulares, ele também ganhou da mãe uma coleção de jogos pedagógicos que estimulam o aprendizado e garantem boas risadas. “Jogamos durante uma hora antes de começarmos o dever, assim ele associa aquele momento a uma coisa boa e entende que estudar pode ser prazeroso”, conta a mãe, a consultora de negócios Lívia de Melo Santos.
O investimento para entrar no eixo e ajudar o filho a atender as expectativas escolares, porém, não descarta uma certa insatisfação com o sistema atual. Para Lívia, o problema não está na lição de casa, mas sim no excesso de conteúdo passado cada vez mais cedo. “Lembro que, na idade do Theo, eu estava pronta para o beabá. Hoje, os meninos dessa idade precisam dominar conteúdos de ciências e geografia. Acho um pouco exagerado”, defende. De acordo com a educadora e psicopedagoga Kátia Chedid, conselheira do CORE (Comunidade Reinventando a Educação) e professora no MBA de Gestão Escolar na Universidade de São Paulo, o grande problema é que as lições de casa não têm cumprido o seu papel, já que as escolas muitas vezes confundem os valores que as tornam realmente efetivas. “A lição não precisa de quantidade, mas de intencionalidade. Ela pode ser uma pesquisa, uma leitura, pode ser um exercício para fixar a matéria e também antecipar um novo conteúdo. Os professores precisam ter criatividade para propor coisas que sejam significativas. É melhor uma atividade que gere interesse do que muitos exercícios maçantes”, afirma.

irmã mais nova | Foto: Carlos Hauck
Mãe da pequena Maitê de Castro Mariano, de 8 anos, a geóloga Taís Castro concorda. “Sinto que a quantidade pode tornar a tarefa cansativa, por isso a minha filha rende mais em dias com menos exercícios. Como fazemos o dever à noite, também precisamos postergar o banho e a ida para a cama se o volume for muito grande, o que não é bom”, afirma. Há ainda algumas interferências da irmã mais nova, Maísa, de 4 anos, que começou a receber lições no ano passado, mas ainda não precisa fazê-las diariamente. “Ela quer sempre participar do momento com a gente, mas acaba nos distraindo um pouco. Eu me divido entre orientar a mais velha e cuidar para que a mais nova não atrapalhe. Enfim, tenho certeza de que não sou a única a passar por isso”, conta.
Já na casa da engenheira paulistana Fabiana Rewald Augelli, a chegada das lições de casa no ano passado, quando a pequena Rafaela tinha apenas 3 anos, não trouxe esse tipo de dor de cabeça para os pais. Na verdade, a empolgação da aluna foi tanta que a mãe decidiu investir nesse momento. “Para este ano, já comprei estojo, caderno, todo o material para ela ter suas próprias coisas e gostar de fazer a lição com capricho. Isso contribuiu até para a organização da nossa casa. Gostamos muito da experiência”, relata.
O meio-termo necessário
Quase unânimes na defesa do dever e de sua importância, as escolas também tentam se adaptar à realidade dos pais que trabalham fora e de crianças que precisam ser estimuladas ao livre brincar. No Instituto da Criança, em Belo Horizonte, as lições diárias começam somente a partir do 1º ano do ensino fundamental. Antes disso, quando os pequenos ainda dependem muito dos adultos, são apenas ocasionais. Além disso, as atividades não levam mais do que 30 minutos para resolução nessa fase. “Consideramos fundamental o aluno ter tempo disponível para brincar, praticar esportes, desenvolver outras habilidades, como música e dança, e até mesmo para ficar à toa”, afirma Margarida Figuerêdo, diretora pedagógica da escola.
O tempo estimado para resolver as lições enviadas pelo Colégio Dante Alighieri, em São Paulo, também é curto: de 40 a 60 minutos. Somente a partir do 3º ano há deveres diários, com uma atividade de língua portuguesa e outra de matemática. Pesquisas que envolvem temas trabalhados em história, geografia e iniciação às ciências são eventuais. Mesmo em quantidades menores, a escola não descarta a importância dos exercícios. “São ótimas formas de fixar os conteúdos e desenvolver as habilidades trabalhadas em sala, além de ajudar a criar o hábito do estudo diário”, diz Symone Mara Menezes Oliveira, coordenadora pedagógica do 2º ao 5º anos do ensino fundamental.

mas sua mãe prefere que ele faça em casa | Foto: Ricardo Borges
A escola onde estuda o pequeno Vítor Vianna Arruda, de 4 anos, decidiu por uma estratégia diferente. Localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro, o Colégio Excelência reserva um horário para as crianças fazerem o dever na própria escola, caso os pais não possam acompanhar em casa. Mesmo assim, a mãe de Vítor prefere estar junto com o filho para perceber o seu desenvolvimento. “Gosto que ele faça em um horário tranquilo, sem correria, e que a gente possa conversar sobre a atividade, saber o que ele achou. É uma boa forma de perceber seu desenvolvimento e saber o que ele gosta ou não gosta na escola”, explica Bruna Vianna, que também é professora e dá aulas no Instituto Nacional de Educação de Surdos do Rio de Janeiro.
Parece que Bruna está no caminho certo. Tatiana Camargos Lamego reforça que a hora do dever é um ótimo momento para os pais fazerem uma avaliação geral dos filhos. “Eles são testados não só na parte cognitiva, mas também em suas habilidades. É um campo de oportunidade para observar a concentração, a parte física e motora, a leitura, a condição visual e muitas outras coisas”, acredita. Para isso, porém, é preciso que o ambiente seja propício ao aprendizado: com boa iluminação, ventilação adequada, cadeira confortável e poucas distrações – eis um dever de casa que os pais precisam fazer.