POR Isabella Grossi
O músico Marco Túlio, com a pedagoga infantil Angela Dariva Lara e seus filhos, João, de 11 anos, e Theo, de 5:
“Em momento algum passou pela nossa cabeça escondê-lo dentro de casa para protegê-lo”
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Qual foi a primeira reação ao saberem que o Theo tinha síndrome de Down?
A Angela estava no quinto mês de gestação quando surgiu um probleminha no coração dele, uma cardiopatia comum em quem tem a síndrome, e isso levantou a suspeita. O susto foi grande, porque a gente não tinha nenhuma afinidade com esse universo. Ninguém da nossa convivência tinha síndrome de Down, então não entendíamos o que significava aquilo. Ao mesmo tempo tinha a questão do coraçãozinho dele, que necessitava de cirurgia. Ficamos concentrados apenas nisso. O Theo nasceu com oito meses, fez a operação aos quatro meses de vida e passou por um pós-operatório de dois meses. Depois disso tudo é que começou, de fato, a nossa relação.
Nesse momento é que veio a compreensão?
Nós vivemos seis meses num processo de apreensão muito grande. Uma mistura de pânico, medo, dúvidas e expectativas. Depois que o Theo se curou da cardiopatia, começamos a viver a vida normalmente. Entendo que cada um busque um caminho de compreensão diferente. Uns se apoiam na religião, por exemplo, outros entendem como coisa do destino. Tentei compreender da maneira mais lúcida, sem pensar “por que isso aconteceu com a gente?”. Queríamos saber o que significava a síndrome de Down. A partir do momento que você sabe que vai ter um filho, começa a pensar se vai ser homem ou mulher, a imaginar como gostaria que aquela criança fosse. Quando você descobre que nada da expectativa vai ser cumprida, que tudo o que virá adiante será completamente diferente, dentro de um universo que você desconhece, isso gera susto e frustração. Não dá para pular essa etapa, faz parte do processo. Uns demoram menos para entender, outros mais. E tem pessoas que passam uma vida inteira sem compreender.
Como foi o convívio inicial dentro de casa?
O João, nosso filho mais velho, que hoje está com 11 anos, foi quem lidou com mais naturalidade durante todo o processo. Não se abalou, não se assustou e sempre esteve muito próximo do Theo. A gente foi com o coração aberto, querendo saber quem era aquela criaturinha. Eu acho que isso acontece com todo filho, especial ou não. Nossa relação foi se desenhando e o Theo aos pouquinhos foi mostrando toda a sua meiguice, sua graça e alegria. Ao contrário da maioria dos downs, ele é muito espoleta. Eu acho que o nosso papel como pais, nesse primeiro momento, foi estar com o coração aberto.
E qual foi a próxima etapa?
Simultaneamente a todo esse processo de assimilação, mergulhamos no universo da síndrome de Down. Fomos procurar indicação de médicos, conhecer a condição, buscar informações de como é e quais as características em comum. A internet ajuda muito, mas também tem muita bobagem. É importante ler bastante sobre o assunto. Desde o início, já tínhamos o conceito muito claro de que faríamos com ele como fizemos com o João, dando o máximo de estímulo possível. Colocar na escola, na natação, na equoterapia, que é importante para fortalecer o abdômen e a postura, por exemplo. Em momento algum passou pela nossa cabeça escondê-lo dentro de casa para protegê-lo e, consequentemente, tirar dele a possibilidade de desenvolver o máximo de sua capacidade, de demonstrar até onde ele é capaz de ir.
Você mencionou a equoterapia, que fortalece o abdômen e a postura. A saúde do down é, de fato, fragilizada?
É importante entender as características básicas da síndrome. Tem disfunção de tireoide, por exemplo. O Theo não desenvolveu, mas estamos sempre atentos. É comum a cardiopatia, a hipotonia, que é a fraqueza dos músculos, e a necessidade de uma dieta mais equilibrada. Não é nada de outro mundo, mas é porque o metabolismo tem facilidade para absorver algumas coisas e outras, não. Ao longo do tempo a gente vai entendendo as capacidades cognitivas. Na nossa vida, tirando a cirurgia quando recém-nascido, existe uma normalidade muito grande. O Theo é saudável e vem se desenvolvendo muito bem. É claro que temos condições de oferecer coisas boas a ele, incluindo tratamentos. Então não posso reclamar.
Em relação à educação, vocês tiveram dificuldades para encontrar uma escola inclusiva?
O Theo está no terceiro ano de uma escola regular, e ele acompanha os outros alunos normalmente. Nós demos sorte porque o colégio é regular, mas é pequeno, então existe uma atenção especial. O fundamento é construtivista, ou seja, eles olham para cada aluno de forma muito aconchegante. Só tenho a elogiar, é tudo muito bacana e ele é muito feliz lá. Não tive problemas, mas é compreensível que existam. Num país como o nosso, onde falar de educação é falar de precariedade para a imensa maioria, quando você olha para um segmento, uma minoria, não vai ser diferente. Não vai ter privilégio em relação a todo o caos que existe.
E fora da escola, como é o dia a dia do Theo?
Ele faz equoterapia, natação, terapia ocupacional e tratamento de fonoaudiologia. Fora isso, a vida dele é cavalo, música e futebol. Ele frequenta um haras por causa da equoterapia, que faz bem porque o cavalo é muito dócil e transmite uma calma. Em casa, adora ficar vendo imagens dos animais saltando. Também ama ver gols e videoclipes. Agora ele está na fase de Anitta, porque outro dia ele foi ao show, no camarim, e ela deu um beijo nele. Ele vai aos nossos shows e fica transitando no meio dos instrumentos. Adora tocar bateria. Pega a guitarra e fica fazendo barulho. Eu não sei se ele tem a dimensão do que é o Jota Quest. Ele já foi ao Rock in Rio comigo e conhece muito bem, mas não sei como ele entende isso em relação à sociedade, se ele acha especial ou banal.
A vida das pessoas com down poderia ser melhor se sua inserção no contexto sociocultural fosse mais adequada. O que falta?
O primeiro ponto é vencer o próprio preconceito, como eu também tive de fazer. Parar de se vitimizar e seguir em frente. Depois, olhar para o mundo que o aguarda e fazer as melhores escolhas para ele. Considerando, é claro, o contexto de cada família, os aspectos particulares, inclusive condições financeiras. Por fim, ir à luta. Buscar as melhores oportunidades e o melhor mundo para o seu filho.
Chegaram a sofrer algum tipo de preconceito?
Talvez as pessoas olhem um pouco surpresas, porque são universos muito distintos. Tenho uma banda de rock, uma coisa que tem um quê de ilusão, de sonho. Elas imaginam esse universo e o preenchem com ficção em suas vidas. É muito sedutor. Aí quando falo sobre o Theo, é uma surpresa. Não vejo como preconceito. Aliás, um olhar recriminando ou realmente preconceituoso eu nunca senti. Os downzinhos têm sido inseridos na sociedade de uma maneira muito bonita. É normal que haja algum estranhamento, mas eu acho que cabe aos pais dar uma direção para isso. Colocá-los diante dos outros de maneira natural e tranquila. Não deve haver vitimização por causa disso, é uma característica, não é um problema. Pelo contrário. O Theo é uma alegria, não saberíamos viver sem ele. A partir do momento que você trata tudo com normalidade, não há por que os outros não verem assim. Ele não é mais especial do que ninguém. É para mim, como qualquer filho é para o pai.
Você e a Angela convivem com outras famílias que têm crianças com down?
Muitas pessoas nos procuram para buscar informações, às vezes vêm até a nossa casa, e entendo esse anseio. Não levanto bandeira para defender porque já tem muita gente fazendo isso. Minha conversa é com os pais, porque a vida dos downzinhos quando crianças está nas mãos deles. Os pais têm de se conscientizar de que depende deles transformar esse primeiro momento, que assusta. Se abrirem o coração e a mente, vão começar a ver que o filho não é como imaginavam, mas de outra maneira, e às vezes muito mais especial. Não vale a pena famílias inteiras serem infelizes, se destruírem, só porque não conseguem enxergar a graça. Ficam muito presos a expectativas e esquecem de deixar as coisas acontecerem. O mundo dos downs está mudando rapidamente. A expectativa de vida deles aumentou muito, o que significa que os pais vão morrer e os filhos vão tocar o barco. Antes, era difícil pensar na vida futura, mas, agora, é preciso trabalhar a inclusão e dar o máximo de estímulo, para eles se desenvolverem.
Que recado daria para pais de primeira viagem?
Muita gente com experiência, quando soube do Theo, me falou que era uma bênção. Eu achei que era mais para me confortar, para me acalmar. Demorei um ano para entender que era do fundo do coração. A partir do momento que me relacionei com ele, soube que era verdade. É um universo fantástico. Meu arco-íris tem uma cor diferente, e foi o Theo quem trouxe para mim. Desejo que todos que tenham um filho down conheçamessa outra cor.