
Mais de 40% dos pais ou responsáveis gritam ou brigam com os filhos. E cerca de 29% admitem dar palmadas, beliscões e apertos, embora somente 17% deles acreditem na eficácia desses métodos como estratégia educativa. Os outros 12% agridem mesmo sabendo que essa não é uma forma eficiente de disciplina. As informações são do levantamento Panorama da Primeira Infância: O que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida, lançado em agosto pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. A pesquisa foi realizada em parceria com o Instituto Datafolha e entrevistou 2.206 pessoas em todo o país, sendo 822 cuidadores de crianças de até 6 anos.
O estudo ressalta ainda ser comum entre adultos a crença de que palmadas e beliscões não fazem mal. Porém, especialistas ressaltam que nenhuma forma de violência contra crianças é inofensiva. “A violência física e verbal deixa marcas profundas na criança. Há impactos físicos, como lesões, hematomas e cicatrizes; comportamentais, como agressividade, ansiedade, problemas de atenção e depressão; e fisiológicos, como o surgimento de doenças crônicas, prejuízos à memória, ao aprendizado e ao sistema imunológico. Além disso, a exposição à violência contribui para a repetição desse tipo de comportamento na vida adulta, perpetuando o ciclo entre as próximas gerações”, destaca a pesquisa.
A diretora-executiva da Fundação, Mariana Luz, lamenta o percentual identificado pelo levantamento e considera que há repetição de um padrão cultural que não funciona como disciplinador. Segundo Mariana, o Brasil é o país do “apanhei, mas sobrevivi”. “A gente é o país que diz ‘quem pariu Mateus que embale’. A gente é o país que acha a criança inferior”, critica a diretora, em entrevista à Agência Brasil. Para ela, o uso de violência física, “não ajuda e não resolve”.
Castigos físicos são proibidos por lei
Aqui no Brasil, há mais de dez anos a Lei Menino Bernardo, também conhecida como Lei da Palmada (Lei 13.010/2014), proíbe esses tipos de castigos físicos aplicados a crianças e adolescentes, com os autores das agressões podendo ser advertidos e encaminhados para cursos e programas de orientação.
A lei foi batizada dessa forma para lembrar a morte de Bernardo Boldrini, de 11 anos, vítima de agressões e morto pela madrasta e pelo pai, em Três Passos (RS), em abril de 2014.
Consequências
Apesar do comportamento repressivo, a maioria dos pais (96%) disse conversar e explicar o erro aos filhos, e 93% afirmaram acalmar a criança e retirá-la do lugar diante de uma situação de indisciplina.
Quanto ao impacto do uso de violência física com as crianças, entre as pessoas que admitem comportamentos agressivos, a maior parte (40%) acredita que a consequência é “maior respeito pela autoridade e ensinar a criança a obedecer”.
Contudo, um terço de quem bate em crianças (33%) reconhece que pode surgir o comportamento agressivo como resultado; e um em cada cinco (21%) admite que a criança desenvolve baixo autoestima e falta de confiança.
“A violência, a palmada, as agressões, as violações de direitos, os abusos, as negligências são detratores diretos do desenvolvimento” enfatiza Mariana Luz.
Ela constata também que ainda há na sociedade a percepção de que as pessoas acham que não devem intervir na educação dos filhos dos outros.
“Um cachorro você não agride em praça pública, porque alguém vai pegar o telefone e vai denunciar. Uma criança não, uma criança recebe um tapa, um berro, um beliscão dentro de um equipamento público e ninguém fala nada”, diz.
Primeira infância
Para Mariana Luz, outro dado do levantamento que chamou a atenção é o fato de 84% do universo pesquisado não saber que a primeira infância é a fase mais importante do desenvolvimento pessoal humano.
A definição de primeira infância como a fase que vai até os 6 anos segue a legislação brasileira. Embora esse intervalo também seja adotado em outros países, podem existir variações.
“Todos os picos do desenvolvimento físico, motor, cognitivo, socioemocional acontecem nos primeiros seis anos de vida”, aponta Luz.
Ela cita que o cérebro de crianças nessa idade realiza 1 milhão de sinapses (comunicação entre neurônios, células do sistema nervoso) por segundo e 90% das conexões cerebrais são estabelecidas.
“Estudo após estudo, reiteradamente, traz as evidências de que são nos primeiros seis anos de vida que se estabelecem as bases físico, cognitivo e emocional”, fundamenta a diretora.
Mariana Luz cita estudos do economista americano James Heckman, vencedor do Prêmio Nobel de economia (2000) sobre investimento na primeira infância.
“Heckman fala que para cada dólar investido, você tem sete de retorno”, lembra. “A primeira infância faz isso porque traz melhorias para diversas camadas socioeconômicas, educação, saúde, a própria segurança pública e da geração de emprego em renda”.
Livres para brincar
A pesquisa procurou saber também quais práticas os entrevistados consideram mais importantes para o desenvolvimento infantil. A mais citada (96%) foi ensinar a respeitar os mais velhos, “superando outras ações que a ciência comprova como essenciais para o desenvolvimento infantil”, como conversar com a criança (88%), frequentar creche, pré-escola (81%) e deixá-la brincar (63%).
Para a diretora-executiva da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, o fato de o respeito aos mais velhos surgir no topo das respostas mostra baixa valorização da educação infantil e do brincar.
“A brincadeira é o eixo principal do que a base nacional comum curricular traz como fio condutor da aprendizagem na primeira infância. Você não pode sentar uma criança pequenininha em uma cadeira e escrever no quadro negro, você precisa do processo lúdico”, justifica.
Tempo de tela
A pesquisa do Datafolha identificou que as crianças na primeira infância passam, em média, duas horas assistindo televisão, celular, tablet ou computador. No caso de 40% das crianças, o tempo varia de duas a três horas.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) recomenda que crianças de até 2 anos não tenham contato nenhum com telas. Entre 2 e 5 anos, máximo de uma hora por dia, sempre acompanhada por um adulto, “para que a interação aconteça”, completa Luz.
Mariana reconhece que muitas vezes a necessidade se impõe, “a pessoa não tem com quem deixar”. Ela sugere que uma forma de reduzir a exposição às telas seja incluindo a criança na rotina da casa. “Incluir na rotina de lavar a louça junto, de botar a roupa no varal”, exemplifica.
A diretora aponta também que é de responsabilidade do Estado a oferta de creches, o que deve ser cobrado pela sociedade. “A responsabilidade dessa criança, pela Constituição, é minha, sua, é da família, é do Estado”, diz.
Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Poder Judiciário no Brasil, decidiu que é dever do Estado garantir vagas em creches e na pré-escola para crianças de até 5 anos de idade. (Com informações da Agência Brasil)