Direito à saúde não é privilégio: um alerta sobre a invisibilização das pessoas autistas

A advogada e pedagoga Karen Regina destaca a importância de combater a desinformação sobre o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista, acesso a tratamentos e adaptações escolares

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Menino segura peças de quebra-cabeça em frente ao rosto
Buscador de educadores parentais
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Por Karen Regina*– No último final de semana, uma coluna de opinião publicada em um dos principais veículos de comunicação do país reacendeu um debate necessário — e doloroso — sobre o reconhecimento dos direitos das pessoas autistas no Brasil. Em seu texto, o pediatra Daniel Becker classificou como “privilégios” os pedidos judiciais de famílias que buscam garantir o acesso de seus filhos a terapias e adaptações escolares. A repercussão foi imediata e escancarou uma tensão latente: o abismo entre quem vive a realidade do autismo e quem a observa de fora, com distanciamento e pouca escuta. 

Saúde suplementar não é luxo, é sobrevivência 

É fundamental lembrar que, no Brasil, o acesso à saúde suplementar não é uma regalia, mas uma tentativa desesperada de compensar a insuficiência do SUS em atender à demanda crescente por terapias. Famílias buscam judicialmente o cumprimento de direitos já previstos em lei, como a Lei nº 14.454/2022, que obriga os planos de saúde a cobrirem tratamentos com comprovação científica. Falar em “enxurrada de processos” como se fosse um capricho ignora o contexto: estamos diante de um sistema que falha em garantir equidade e acessibilidade. 

Judicialização como forma de resistência 

A judicialização, nesse caso, é a única forma que essas famílias encontraram para serem ouvidas. E elas não estão exigindo favores — estão exigindo o mínimo. Não se trata de buscar tratamento VIP para os filhos, mas de garantir o que é necessário para que possam, simplesmente, se desenvolver com dignidade. 

Outro ponto que merece destaque é a ausência de dados robustos na argumentação do colunista. As estimativas da OMS indicam que entre 1% e 2% da população mundial é autista, mas esse número pode variar entre países não por um “exagero de diagnósticos”, e sim pela diferença de acesso a diagnóstico. No Brasil, o número de diagnósticos está aumentando não porque há mais autistas, mas porque finalmente estamos enxergando quem antes era invisível. O que antes era silenciado — por vergonha, desconhecimento ou negligência institucional — agora vem à tona. E isso incomoda. 

O mito das telas e o perigo da desinformação 

A fala de que as crianças estão sendo diagnosticadas por estarem “imersas em telas”, com “maus hábitos alimentares ou de sono”, é um argumento perigoso. É essencial combater a desinformação: o autismo é, em sua maioria, de base genética. Crianças em ambientes com pouca estimulação ou em contextos adversos podem apresentar atrasos no desenvolvimento, sim, mas isso não as torna autistas — e tampouco as exclui da necessidade de apoio. Colocar a culpa nas famílias por “buscarem respostas rápidas” desresponsabiliza o Estado e as instituições de saúde por sua omissão histórica. 

Há ainda a acusação velada de que “estamos exagerando”, pois “ninguém mais aguenta tantos laudos”. Mas é preciso dizer, com todas as letras: o problema nunca foi o excesso de diagnósticos. O problema é o despreparo das estruturas para lidar com a diversidade. Quando educadores, juízes ou médicos se veem sobrecarregados, não é porque há muitos autistas — é porque não há estrutura suficiente, nem formação adequada, para acolhê-los. 

Menos de 20% das crianças atendidas por planos de saúde chegam a fazer 10 horas de terapia semanais, de acordo com informações da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar. A criança que faz 40 horas — protocolo comum nos casos de autismo com necessidade de suporte elevado — é exceção. A maioria ainda esbarra na burocracia, no negacionismo e na lógica de lucro que rege o setor privado de saúde. Em 2024, os planos de saúde lucraram R$ 10 bilhões. Chamar de “privilégio” o acesso a serviços mínimos diante desse dado é, no mínimo, insensível. 

Falta escuta e sobra julgamento 

É sintomático que colunas em jornais como essa não deem voz às famílias. Não há um relato sequer de mães que enfrentam a maratona de ligações, negativas, reembolsos e laudos que expõem a intimidade de seus filhos como se precisassem provar diariamente que suas crianças existem. Não há escuta aos adultos autistas que poderiam contar como foi crescer sem apoio. Não há espaço para a vivência, só para a opinião. 

É preciso um compromisso para fomentar diálogos que promovam justiça, equidade e pertencimento. Precisamos, como sociedade, parar de tratar como exagero aquilo que é, na verdade, um grito legítimo por inclusão. Precisamos ouvir mais, julgar menos. E, sobretudo, precisamos reconhecer que não há privilégio maior do que poder viver com dignidade — e é isso que está em jogo quando falamos de crianças autistas e seus direitos. 

É hora de sair do lugar confortável das teorias e descer para o chão da realidade, onde mães lutam todos os dias para que seus filhos tenham acesso ao básico. E isso, definitivamente, não é privilégio. É urgência. É justiça. 

 Texto inspirado em vídeo publicado pela deputada estadual de São Paulo, Andrea Werner, e pela advogada Vanessa Ziotti.

*Karen Regina é advogada, pedagoga e educadora parental. Mãe de três crianças.

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