O que a nossa infância tem a ver com a forma como criamos os nossos filhos? Tudo, diz a psicoterapeuta inglesa Philipa Perry. Para ela, a criação que recebemos dos nossos pais pode afetar a relação com os nossos filhos, daí a importância de tomarmos cuidado com os padrões de comportamento e personalidade que herdamos e que podemos repassar para as crianças, influenciando a forma como elas julgam a si mesmas e aos outros. “Se você tiver o hábito de se cobrar demais e se repreender, é possível que seus filhos adotem esse mesmo comportamento prejudicial”, diz Perry.
Em 2019, ela escreveu “O Livro que você gostaria que seus pais tivessem lido (e seus filhos ficarão gratos por você ler)”, da editora Fontanar (R$ 44,90), recém lançado no Brasil. Ela começa o livro com um recado: “O clichê é verdade: as crianças não fazem o que falamos; fazem o que fazemos. Antes mesmo de pensar sobre o comportamento de nossos filhos, é útil — fundamental, até — analisar seus primeiros modelos de comportamento. E um deles é você”.
Sentir raiva dos filhos pode não ter a ver com eles – e, sim, com os próprios pais e o seu passado
Perry cita a história de uma mãe, Tay, que ficou brava porque a filha Emily, de 7 anos, pediu ajuda para descer do trepa trepa. Depois, a mãe percebeu que aquilo a fazia recordar quando ela era pequena e sua mãe a tratava como princesa, carregando-a para todos os lados, o que a fazia sentir-se incapaz de fazer qualquer coisa sozinha – e Tay não queria que sua filha Emily fosse educada assim. A reação negativa dos pais, diz Perry, como sentir raiva ou outro sentimento difícil, também pode estar relacionada a outro tipo de situação da infância: quando as pessoas que nos amavam, além de apreço demonstravam nos achar irritantes, difíceis, incômodos ou bobos, por exemplo. “Quando o comportamento dos seus filhos desperta essa lembrança, seu gatilho dispara, e você acaba gritando ou expressando qualquer que seja seu comportamento negativo habitual.”
Diante de situações assim, então, o que fazer? Em vez de reagir sem pensar, pare, dê-se um tempo para refletir e se pergunte se esse sentimento negativo tem mesmo a ver com a situação e a criança no momento presente; e se você está considerando o ponto de vista dela, sugere Perry. E se você não se conter e descontar na criança – o que num mundo perfeito jamais deveria ocorrer – peça desculpas e reconheça que se descontrolou, complementa ela.
Colunista da revista inglesa Red e no jornal The Guardian, ela já apresentou diversos documentários na BBC e no Channel 4, entre os quais, “A Verdade Sobre as Crianças que Mentem”. Nos mais de 20 anos de prática psicoterapêutica, ela atendeu pacientes que tinham “pais gentis, agradáveis e bem-intencionados”, mas que não conseguiam se sintonizar com os seus filhos. Então, estes se sentiram sozinhos e a solidão meio que se transformou em depressão. Para colocar essas pessoas de volta aos “trilhos”, Perry diz ter de fazer todo um trabalho de validação dos sentimentos que, na verdade, deveria ter sido feito pelos pais. “Não seria ótimo se os pais fizessem isso sozinhos? Se os pais pudessem fazer isso desde o início, certamente eu poderia desistir de ser psicoterapeuta – e arranjar flores”, diz ela ao The Guardian, esclarecendo de onde surgiu grande parte da inspiração do livro.
Vinda de uma família “boa” e “de classe média”, ela também aproveitou a sua própria história como exemplo – do que não fazer. Segundo Perry, os seus pais criaram os filhos mais com punição do que com incentivo – o que a teria levado a fazer terapia e, depois, a uma carreira em saúde mental.
Não julgue as crianças e expresse aquilo que admira nelas
Os relacionamentos – com os filhos, com nós mesmos, com o nosso passado e o mundo ao nosso redor – é o foco do livro. “Somos apenas um elo de uma cadeia que se estende por milênios e adiante até quem sabe quando. A boa notícia é que você pode aprender a remodelar seu link, e isso melhorará a vida de seus filhos e dos filhos deles, e você pode começar agora”.
Como? Passando adiante apenas as coisas boas que recebemos na criação e abandonando os aspectos menos benéficos. Da mesma forma, evitando rótulos como ‘bons’ ou ‘maus’ pais, pois os rótulos giram em torno de extremos e é impossível estar em perfeita sintonia com os filhos o tempo todo, diz Perry. Ela acrescenta que tampouco ajuda classificar os pequenos com adjetivos como ‘quietos’, ‘desajeitados’ ou ‘barulhentos’, visto que eles crescem e mudam o tempo todo. “É muito melhor descrever o que você vê e expressar aquilo que admira em vez de julgar. Sendo assim, diga: “Gostei de ver sua concentração enquanto fazia aquelas contas” em vez de “Você tem facilidade para a matemática”. Diga: “Seu desenho me impressionou. Gostei da casa que parece estar sorrindo. Isso transmite felicidade”. E não “Lindo desenho”. Elogie o esforço, descreva o que você vê e sente e estimule seus filhos sem julgar.”
Leve os sentimentos do seu filho a sério
Perry diz odiar dicas e estratégias, mas, se existe uma que vale a pena, ela diz que é a seguinte: não crie uma batalha em torno do que uma criança está sentindo. Se uma criança de oito anos diz que não quer ir à escola, de nada adianta responder “você vai, e pronto”, orienta Perry. Mas se dissermos “Você está odiando mesmo a escola agora, hein?” e será mais fácil para a criança escutar. E isso abre espaço para o diálogo. Da mesma forma, quando o filho diz que há monstros debaixo da cama, não devemos fazê-lo se sentir bobo e soltar um “Deixa de bobagem — você sabe que monstros não existem”, o que dificilmente vai tranquilizá‐lo. Em vez disso, nomear o sentimento que os monstros parecem representar se mostra mais eficaz. “Você parece estar com medo, pode me contar mais?” Ou: “Vamos criar uma história sobre esses monstros. Como eles se chamam?”. E isso não significa ceder à vontade ou queixa da criança. Significa apenas encarar os sentimentos dela a sério, levá‐los em consideração ao tomar decisões e ajudar a tranquilizá‐la. “Se você reagir de forma histérica, não vai ser capaz de conter nem seus próprios sentimentos, muito menos os de uma criança.”
A empatia é um trabalho mais difícil do que pode parecer, comenta a psicoterapeuta. Não é o mesmo que desistir de seu ponto de vista, e sim uma questão de realmente ver e entender por que o outro se sente assim e, o que é mais importante, sentir junto.
Minha nossa, você deve estar pensando, já é difícil dar conta de todas as coisas que preciso fazer para manter meus filhos seguros, alimentados e limpos. Agora, como se isso não bastasse, preciso sentir o que eles sentem também? Sim, adquirir o hábito de falar sobre sentimentos, tanto os seus como os dos seus filhos, é fundamental, aconselha a inglesa.
A estrutura familiar – se os pais são gays, heterossexuais ou bissexuais – não importa
O formato da família – pais que moram juntos ou separados, em uma comunidade ou a três, se são gays, heterossexuais ou bissexuais – não importa, segundo a psicoterapeuta, que é casada com um artista travesti, Grayson Perry. Já a maneira como nos comportamos com o parceiro, os irmãos, os avós, os empregados e amigos íntimos – o pequeno círculo de pessoas mais próximas – influencia o desenvolvimento da personalidade e da saúde mental da criança. “As pessoas que fazem parte da vida de uma criança compõem o seu mundo. Pode ser um mundo de amor e prosperidade, mas também um campo de batalha.” E a vida não pode pender para este último. A preocupação com a segurança, proteção e pertencimento pode impedir as crianças de se sentirem livres para desenvolver sua curiosidade sobre o mundo. E a falta de curiosidade causa um impacto negativo sobre a concentração e o aprendizado, complementa.
No caso de pais separados, ela recomenda sempre falar de modo respeitoso do cônjuge, pois a criança se sente como uma parte integrante de cada um e se uma metade dessa parceria é sempre citada como ‘pessoa ruim’, ela pode internalizar essas palavras e passar a se achar ‘ruim’ também. “A criança vai se sair melhor no futuro se seus pais cooperarem entre si e tiverem uma boa comunicação, e se continuar a ter contato regular com ambos. Se isso for possível, a probabilidade de seus filhos se tornarem deprimidos ou agressivos vai ser menor.”
O livro mais parece um grande guia de tantos assuntos, exemplos, exercícios e orientações que traz. Além das reflexões do passado, os relacionamentos e os sentimentos, Perry discorre de temas como a gravidez, teoria do apego, choros coercivos, depressão pós-parto, condições para a boa saúde mental, a comunicação com o bebê, o sono, o brincar, comportamento, birras, choramingos, mentiras, limites e os adolescentes.
O que é incrível, diz a psicoterapeuta, é que, apesar de todos os erros cometidos, o amor que deixamos de dar e a falta de tempo dedicado aos filhos, ainda assim criamos um laço com eles, e eles conosco. “Podemos ajudá‐los e estimulá‐los a correr atrás de seus desejos, esperanças e sonhos. E acreditamos neles. E eu acredito em você”, diz ela no encerramento do livro.
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