Precisamos falar sobre a crise

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Com franqueza e calma, os dias de dificuldade financeira podem servir de aprendizado para as crianças — e para toda a família
POR Sabrina Abreu

 

Vamos falar sobre a criseInflação em dois dígitos, moeda desvalorizada, desemprego em alta, otimismo em baixa. A crise econômica de 2015 e seus efeitos em 2016 deixam o brasileiro com a impressão de que já viu esse filme — ou assistiu a esse telejornal, com uma má notícia atrás da outra. Enquanto muitas famílias se veem obrigadas a enxugar o orçamento doméstico, pais e responsáveis de crianças não podem deixar de dar atenção especial à adaptação dos pequenos à nova realidade. “É preciso falar a verdade, numa linguagem adequada e sem cobrança”, alerta a psicóloga e pedagoga Renata Miranda. Uma conversa sincera é necessária, até mesmo porque os pequenos são capazes de perceber, pelo comportamento dos adultos ao seu redor, quando há algo de errado acontecendo. E a desinformação pode ser angustiante. “As crianças são esponjinhas que observam e captam tudo ao seu redor. Elas absorverão muito mais o que sentirem do que o que escutarem”, explica a educadora e coach em finanças pessoais Ana Paula Hornos.

No livro infantil Pai sem Terno e Gravata, obra de ficção baseada em histórias (muito) reais, Andreia, uma menina de 10 anos, vê sua vida mudar após seus pais perderem o emprego, numa época de crise no país. A família de classe média se muda para um apartamento menor, transfere os filhos do colégio particular para uma escola pública e cancela a festinha de aniversário da caçula. Mais do que o esforço para economizar, o estado psicológico do pai chama atenção. Numa passagem, a menina o vê chorando. Em outra, diz que ele passou a gritar com ela e seus irmãos, coisa que nunca fazia antes.

“Em fases de stress, surge a tendência de culpar os outros”, explica a psicóloga Renata. “Adultos precisam ter discernimento para não agirem assim.” É consenso entre os especialistas que a atitude dos responsáveis vai afetar as crianças, de modo a deixá-las tranquilas ou ansiosas. Viver num clima de stress e desesperança pode até ser traumático e comprometer o desenvolvimento nas fases seguintes do crescimento. O educador financeiro Phillip Souza afirma que é corriqueiro atender adultos que sabotam a própria carreira ou não aceitam cargos de chefia, por associações nocivas feitas na infância. “Em vez de ensinar que o dinheiro é algo ruim, é melhor mostrar aos filhos que estamos no controle e podemos resolver nossos problemas, inclusive os financeiros.”

Mas como os adultos podem evitar a angústia? “Antes de tudo, é preciso entender que na economia sempre haverá altos e baixos. Que o dinheiro é um recurso limitado e, portanto, sujeito a ciclos”, diz Ana Paula. “O importante é desenvolver flexibilidade para se adaptar aos diferentes cenários.” A especialista também acredita que o mau momento financeiro tem seu lado positivo. “A atual geração de crianças nasceu e cresceu em uma economia aquecida e com o consumo em alta no Brasil. A crise pode ser vista como uma excelente oportunidade de ensinar aos pequenos sobre esses altos e baixos.” Renata ressalta que, mesmo um cenário extremo, como a mudança da rede particular para rede pública de ensino, pode levar a criança a perceber qualidades, caso seja estimulada corretamente. “Os pais podem chamar a atenção dos filhos para a chance que eles têm de fazer novas amizades e conviver com crianças de realidades diferentes da velha escola”, aponta. “Claro que se o responsável disser ‘agradeça ao governo por você estar nessa porcaria de sala de aula’, o aluno terá menos facilidade de assimilar a mudança”, compara a psicóloga. Ela também esclarece que, embora lutem para resolver os problemas financeiros e não afetar negativamente a família, alguns adultos apresentam mais dificuldade para conseguir isso. Pode ser o caso, por exemplo, de compradores compulsivos que não deixam de fazer dívidas, mesmo sem ter como quitá-las. Esses devem procurar ajuda especializada, para seu próprio bem e para o bem dos filhos.

“Antes de tudo, é preciso entender que na economia sempre haverá altos e baixos. Que o dinheiro é um recurso limitado e, portanto, sujeito a ciclos.”

Ana Paula Hornos, educadora e coach em finanças pessoais

Autora de Pai sem Terno e Gravata, Cristina Agostinho teve a ideia de escrever o livro depois da empresa de siderurgia em que trabalhava pedir concordata. Os relatos dos colegas demitidos deram origem ao título, que já vendeu mais de 100 000 cópias, desde que foi lançado, em 1992. Apesar de tantos problemas, o final da história da família de Andreia é feliz, uma superação que Cristina também viu na vida de alguns de seus ex-companheiros de trabalho. “É triste pensar que o tema continua atual, porque, no Brasil, as crises vêm e vão, mas fico feliz por ter recebido cartas de pais e filhos de todo o Brasil, com depoimentos de como superaram os obstáculos”, conta ela. Cristina recebeu centenas de cartas de leitores, para os quais os personagens tornaram mais fácil a tarefa de lidar com os reveses da vida real.

“Em vez de ensinar que o dinheiro é algo ruim, é melhor mostrar aos filhos que estamos no controle e podemos resolver nossos problemas, inclusive os financeiros.”

Phillip Souza, educador financeiro

Na ficção, a família permaneceu unida e usou a criatividade para suprir a falta de recursos. Eles combinaram, no Natal das vacas magras, fazer um amigo oculto diferente, em que cada um confeccionou a mão o presente que daria. Apesar de o peru da ceia ter sido substituído por um frango, foi uma noite feliz. E esse é outro legado que a crise pode deixar. “A sociedade tem valorizado o ter e o ostentar mais do que o ser, mas podemos voltar a dar valor às pessoas acima das coisas”, indica Renata. Para estimular essa atitude, a educadora Ana Paula Hornos recomenda uma rotina de gratidão em família. “No jantar, por exemplo, todos podem compartilhar e agradecer por coisas boas que aconteceram durante o dia. É um exercício que leva à percepção de felicidade, independentemente das circunstâncias.” Independentemente das notícias do telejornal. 

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