“A leitura vem de um certo amor pela arte, pela história, a criança vai tomando gosto de ouvir história, então, começa a querer ler”, diz Ruth Rocha, uma das escritoras mais lidas pelas crianças, que completou 91 anos, no dia 2 de março. Autora de sucessos como Marcelo, marmelo, martelo – seu best-seller, com mais de 70 edições e 20 milhões de exemplares vendidos -, O reizinho mandão e Bom dia todas as cores!, Ruth é um marco na literatura infantojuvenil brasileira.
“Escrevi mais de 200 livros, traduzi mais de 100 títulos, fiz uma enciclopédia Larousse, fui editora executiva (da editora Abril), fiz bastante coisa, acho que gosto de trabalhar”, diz ela, sobre seus mais de 50 anos de carreira. “Uma coisa que eu não devia dizer, mas vou dizer, acho que meus livros são bons, tem muita gente que quer saber o segredo dos meus livros, mas não tem segredo, é porque os livros são bons”, comenta, quanto ao desafio de se manter relevante após tantos anos de estrada.
De fato, difícil não se encantar com histórias e personagens como o menino Marcelo e seus questionamentos sobre a origem das palavras, ou o camaleão que vivia mudando de cor para agradar aos outros, até que se dá conta que “quem não agrada a si mesmo não pode agradar a ninguém”.
Em conversa por telefone com a Canguru News, a escritora falou sobre O Grande livro dos macacos, que escreveu durante a pandemia e será lançado este ano, momentos marcantes de sua carreira, o carinho pelas crianças e a experiência da pandemia. Também contou quais são suas obras preferidas – autores e livros que ela gosta de ler, não as que escreveu, pois destas disse não ter favoritos – e aconselhou os pais a lerem muito – para si e para os filhos – ajudando assim as crianças a tomar gosto pelos livros.
Foi numa “ família de conversa”, inclusive, que ela se formou leitora. “Eu tinha um avô que contava muita história, sabia todas as histórias do mundo”. Hoje, por não enxergar muito bem, quem lê para ela, diariamente, por telefone, é a irmã Rilda, de 93 anos. Autores russos como Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski e o israelense Yuval Harari estão entre as obras lidas. Saiba mais detalhes na entrevista a seguir e ouça áudios de alguns trechos da conversa.
Você completou 91 anos recentemente. Como encara a passagem dos anos?
Olha, eu não ligo para datas. Acho que data é uma coisa combinada, não é duradoura, mas fiz 91 e organizei uma pequena comemoração na internet com os amigos. Quando eu tinha 49 anos, um menino na escola perguntou minha idade e ao saber que era 49 ele disse que eu parecia mais jovem, que eu parecia ter 48 anos. Então, agora eu digo que tenho 91, mas não pareço, pareço ter 90 anos. Essa pandemia é uma chatice, né? No começo, eu estava animada, arrumei a casa, minhas gavetas, mas aí, não sei porque, tomei um remédio e me fez mal, fiquei desanimada. Mas estou bem de saúde, não tenho nada, não tenho dores, faço ginástica duas vezes por semana, e RPG (reeducação postural global) uma vez por semana. Tenho muito contato com amigos e minha família, me telefonam muito, a gente conversa muito, e recebo algumas visitas. Eu já estou um pouco lenta, mas o mundo está lento e está muito ruim. A gente liga a TV e só vê desastre, guerra, epidemia, e gente que morreu não sei do quê. É um horror, notícias sobre guerra estou restringindo, não fico vendo não.
Você escreveu algo neste período de pandemia?
Tempos atrás eu fiz um livro sobre os macacos, mas não gostei do resultado, e achei que estava sem graça e guardei. Agora na pandemia comecei a tirar coisas que tinha guardado e veio essa ideia de juntar o macaco com a evolução de Darwin que torna o livro mais rico.
Sobre o que trata ‘O Grande livro dos Macacos’, que será lançado este ano?
O livro fala muito de macacos, mostra o som dos macacos, mostra coisas reais que eles fazem, como abrir frutas com uma pedra, e tem várias histórias sobre como eles aprendem as coisas. Tem brincadeiras com macacos, provérbios e versinhos de macacos. Também falo dos macacos reais de Gibraltar, e falo que as pessoas nem sempre gostam de falar que são descendentes de macacos, mas não somos descendentes de macacos, somos descendentes de um ser que deu origem aos homens e aos macacos, somos parentes. Falo também do (Charles) Darwin, da teoria da evolução e sobre a seleção natural. Também estou lançando outra coleção, na (editora) Global, “Comecinho”, são oito livros e já saíram três, é uma reedição. A primeira edição tinha ilustrações do meu marido (Eduardo Rocha), os personagens eram mais papudinhos, agora a ilustração é de Mariana Massarani, está muito bonito.
Tem algum tema sobre o qual ainda não escreveu mas gostaria de fazê-lo?
Tem uma tema que não sei o que fazer, eu queria fazer um livro contando o que é certo e o que é errado, é um pouco sobre moral, mas eu tenho que achar uma maneira de não ficar moralista, porque se ficar moralista eu não faço (risos).
Além de livros, há planos de levar suas histórias para outros formatos, como o podcast, por exemplo?
Eu não entrei nesse novo recurso, mas estão fazendo uma adaptação de Marcelo, marmelo e martelo para uma série de TV. Não sei quando vai estrear.
A sua família contribuiu para que você gostasse de ler?
Olha, eu me formei numa família de conversa, era uma casa onde se contavam e se liam muitas histórias. Minha mãe leu Monteiro Lobato até nós (os quatro irmãos) aprendermos a ler. Minha avó me ensinava a cantar e meu avô parecia que editava as histórias, porque eram tão bem contadas que a gente queria que ele contasse 50 vezes, e ele contava. Tudo isso contribuiu para a minha formação, foi minha faculdade, sabe? E depois eu li muito, gosto muito de ler. Acho que isso é importante. Por exemplo, sou muito amiga da (escritora) Ana Maria Machado, que foi casada com meu irmão (Álvaro). Somos muito amigas, começamos juntas na revista Recreio, no mesmo ano, e ela também é um exemplo de família em que o avô ou a avó contava muita história e falava muito sobre plantas. Ela sabe o nome de tudo que é planta. Acho que ter uma infância rica de histórias é muito importante para a criança.
Esse seria um caminho para estimular o gosto pela leitura nas crianças?
Ler bastante é resultado de algumas coisas. A gente não sabe o que é que existe nessas pessoas que são loucas por leitura, gente que nem tem livro em casa e vai buscar livros na casa do tio e começa a ler. Mas tem coisas que podem estimular, acho que o exemplo é uma coisa muito boa. Se os pais lerem bastante, acho que estimula a criança (a ler). Ter livros também é importante. Levar a criança na livraria a escolher livros, ler para ela, às vezes, ler para uma criança até grande, se a gente lê, estimula a leitura. Eu conheço mães que leem pedaços e depois param de ler pra criança ter que ler sozinha, isso é outro estímulo. E contar histórias também. A leitura vem de uma certo amor pela arte, pela história, a criança vai tornando gosto de ouvir história, então começa a querer ler.
O que você gosta de ler?
Ixe, já li muito, muito, muito na minha vida, aliás, sempre digo que quem quer ser escritor tem que ler, ler e ler mais e mais e mais. Agora, estou enxergando mal e minha irmã (Rilda), de 93 anos, é quem lê para mim todos os dias, durante uma hora. Já lemos “Guerra e Paz”, “Irmãos karamazov”, “Ana Karenina”, o livro (Sapiens) do Yuval Harari. Atualmente, estamos lendo um livro que chama “10 lições sobre Bourdieu”. Hoje mesmo ela me telefonou para esclarecer algumas coisas que não tínhamos entendido, o livro que explica a teoria dele é mal explicado. Eu gosto de poesia, tenho um monte de livros de poesia, mas não tenho livros preferidos, tenho livros que já gostei muito, livros, até, que marcaram minha vida. O livro que marcou minha vida foi Reinações de Narizinho. Li muito Machado de Assis, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, poesia, gosto muito de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Ferreira Gullar, gosto muito de livros de brasileiros, leio toda literatura brasileira, Graciliano Ramos. Estrangeiros, gostei muito de Tolstói, são esses.
E em relação a seus livros, tem algum de que gosta mais?
Não, não tenho, eu gosto de todos, é claro que o Marcelo (Marcelo, marmelo, martelo) é o livro que mais vende há 50 anos, então eu tenho que ter um respeito.
Como vê o uso cada vez maior de telas pelas crianças?
Olha, a criança, até certa idade, é sempre igual (com ou sem telas), só que agora (os pais) dão muita confiança, mas elas sempre foram espertas, só que as pessoas não sabiam. Telas acho perigoso porque acho que essa conversa de internet é uma conversa vazia, meio boba, entra gente de todo tipo, falam coisas que não sei se criança devia estar ouvindo, mas, por outro lado, a gente não deve deixar de ter esperança no que criança aprende na TV, porque ela também aprende. No tempo da minha filha, ela não via TV, a gente morava em casa e ela brincava na rua, nem ligava muito pra TV, mas se eu tivesse um filho pequeno hoje eu não deixaria ver o dia inteiro a televisão. Acho que tem que variar, brincar bastante e com outras crianças. A escola hoje é a coisa mais importante, porque dá contato social, além da parte intelectual. Agora acho que não se deve dar tablet, telefone celular para criança pequena, eu sou contra até os 5 anos.
Você já disse que gosta muito de gente, principalmente, de crianças. Por quê?
Ah, não sei, tenho o maior carinho porque criança é uma coisa frágil mas é a esperança do mundo. Quando vejo bombardeios na Ucrânia, que atingiram um orfanato, me senti mal, uma notícia dessas é uma coisa horrorosa. Eu me espanto de quem não gosta muito de criança. Eu gosto muito de gente, viu, eu não ligo para coisas, eu ligo para pessoas.
Você já recebeu inúmeros prêmios e homenagens e dá nome a bibliotecas e escolas por todo o país. Também chegou a lançar na sede da ONU (Organização das Nações Unidas) uma versão da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Quais momentos da sua carreira guarda na memória como mais marcantes?
Todas essas ocasiões são muito marcantes porque tem uma medida que é o público, mas tem outra medida que é a crítica. Lançar um livro na ONU é muito marcante, né? Ganhei vários prêmios, muitos, sabe? Entrei na Academia Paulista de Letras, que é uma coisa importante. Fui condecorada pelo presidente FHC (Fernando Henrique Cardoso), tive homenagem da Revista Claudia, do Prêmio Jabuti, tive muita coisa boa, conheci muita gente boa, fui muito a feiras, fiz uma vez uma sessão de autógrafos junto com Mário Quintana, são coisas que a gente não esquece.
Após tantos livros lançados, o que faz para que suas obras sigam sendo atrativas para as crianças?
Eu mesma não tenho a menor ideia, mas posso dizer que também é trabalho, sou uma pessoa que gosto de trabalhar, escrevi mais de 200 livros, traduzi outros 100 livros, fiz uma Enciclopédia Larousse, fui editora executiva (das publicações infanto juvenis da editora Abril), fiz bastante coisa, acho que gosto de trabalhar. Uma coisa que eu não devia dizer, mas vou dizer, acho que meus livros são bons, tem muita gente que quer saber o segredo dos meus livros, mas não tem segredo, é porque os livros são bons.
A senhora se considera uma pessoa feliz?
Acho que fui muito feliz, tive uma família muito boa, tive um marido maravilhoso, tenho uma filha maravilhosa, que se dá comigo, até hoje somos amigas. Tenho dois netos fantásticos, ótimos rapazes, trabalhadores, inteligentes e simpáticos. Tenho 10 sobrinhos, todos ótimos, inteligentes, honestos, nenhum é errado. Olha, tenho uma família invejável, então eu fui muito feliz, hoje não sou tão feliz, porque sinto falta do meu marido, de escrever, que não estou escrevendo muito, mas tenho saúde, vivo muito bem, eu sou feliz sim.
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Maravilhosos os seus livros. Você é espetacular. Amo trabalhar com meus alunos.