Por Isabella Grossi
Quando completou seis anos de carreira em uma multinacional alemã que pertence a um grupo americano, a publicitária paulistana Fernanda Nascimento, hoje com 44 anos, fez fertilização in vitro. “Me planejei e foi tudo muito organizado”, conta. “Eu tinha bastante proximidade com o board da empresa e conversava com eles sobre família.” Não demorou muito para que as obrigações do trabalho interferissem em sua rotina. “Tive uma reunião na China e fiz banco de leite”, lembra. “Passei sete dias viajando e deixei meu filho de 5 meses com o meu marido, a minha mãe e a babá. Eu tinha boas perspectivas.” Nove meses após o nascimento de Bernardo, no entanto, Fernanda engravidou de Vicente. “A segunda vez foi demais para a empresa. Quando voltei de licença, vi sinais de mudança. Nas reuniões, minhas ideias eram rechaçadas e eu fui afastada de vários projetos.” Até acabar o período de estabilidade — direito assegurado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que garante a permanência no emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto —, a publicitária amargou, inclusive, um processo de seleção interno. “Foi como se tivessem armado um teatro, então fui ao meu chefe e perguntei: ‘Dá para falar que vou ser demitida?’.” Não deu outra. Mãe de dois filhos pequenos, a profissional, que atualmente é dona da Stratlab, agência especializada em comunicação integrada, estava na rua.
Com a Revolução Industrial, ocorrida entre os séculos XVIII e XIX, as mulheres ganharam espaço no mercado de trabalho, embora recebessem menor remuneração — ainda hoje, em média, o salário das mulheres é 24% inferior ao dos homens na mesma função, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) — e fossem subjugadas em suas funções. Após muita luta e resistência, aos poucos o cenário foi mudando, especialmente com a promulgação da CLT no Brasil, em 1943. Em relação às gestantes, além da estabilidade provisória, a legislação trabalhista estabeleceu uma série de regras (veja o quadro abaixo) para proteger as mães do preconceito e da discriminação. “É importante ficar claro que o fato de uma mulher estar grávida não significa que ela não possa ser demitida. É diferente, ela não pode ser demitida porque está grávida”, pontua a advogada Tarsila Neiva. “Se uma empresa estiver reduzindo o quadro de funcionários ou passando por uma reestruturação, as gestantes poderão ser desligadas, mas, além da verba rescisória, elas terão de receber a indenização pelo período de estabilidade.”
Foi o que aconteceu com a relações-públicas Luísa Alves, de 34 anos. Pouco tempo depois de entrar em um dos maiores grupos têxteis do Brasil, com filial em São Paulo, ela descobriu a gestação. “Fiquei insegura de dar a notícia, porque eu não tinha a intenção de engravidar naquele momento”, afirma. Embora tenha aumentado a carga horária para organizar todas as pendências e trabalhado até uma semana antes do nascimento de Aurora, que está prestes a completar 2 anos, Luísa voltou da licença-maternidade e imediatamente foi demitida. “A desculpa foi a crise, mas eles já tinham contratado outra pessoa para ficar no meu lugar”, conta. Sua chefe nem ao menos esperou a estabilidade. “Ela me disse que achava justo que eu fosse para casa ficar com a minha filha e preferiu me indenizar pelo tempo que restava.” Com o dinheiro do Fundo de Garantia, a relações-públicas empreendeu e lançou o Guia Fora da Casinha, com dicas de eventos para pais e filhos na cidade de São Paulo.
A realidade para quem não trabalha no regime CLT é ainda mais dura. A designer niteroiense Cristiane Biolchini, de 32 anos, que o diga. Assim que completou três meses de gravidez, ela contou a novidade aos gestores da empresa de live marketing focada em esportes na qual trabalhava havia três anos. “Todo mundo ficou muito feliz por mim”, afirma. “Eles beijavam minha barriga, faziam carinho e chegaram até a preparar um chá de fraldas.” A alegria durou pouco. “Descobri que era uma gravidez de risco e, por isso, precisei trabalhar de casa alguns dias na semana.” A ausência do escritório não prejudicou a produtividade de Cristiane, que cumpriu o cronograma até uma semana antes dar à luz João Vitor, hoje com 2 anos. Quase no fim da licença-maternidade, ela colocou o filhote na creche e organizou seu dia a dia para conciliar os compromissos profissionais com a responsabilidade materna. Um mês após o retorno, veio a notícia. “O diretor me chamou na sala dele e disse que eu não me enquadrava mais no perfil da empresa.”
Embora fosse contratada como pessoa jurídica (PJ), a instituição respeitou o período de estabilidade e pediu o adiantamento de quatro notas fiscais. “Eles me pagaram cerca de 9 000 reais a mais, alegando uma espécie de rescisão”, diz. “Pelos cálculos feitos com o meu advogado, se fosse pela CLT, a diferença seria de quase 100 000 reais.” Cristiane encontrou dificuldades para se reinserir no mercado de trabalho e acabou optando por abrir a própria empresa, de moda praia infantil, a Le Infanti. “Acho engraçado eles usarem a gravidez como motivo de dispensa”, argumenta. “Quando você é mãe, o seu rendimento não cai, pelo contrário. Sua performance melhora, porque você quer entregar tudo mais rápido para evitar virar a noite e pegar o seu filho acordado, por exemplo.” Assim como Fernanda e Luísa, Cristiane deu a volta por cima e hoje consegue passar mais tempo com o pequeno enquanto comanda o próprio negócio. Mas nem todas as histórias de discriminação a gestantes têm um final feliz.
Baque na carreira
Rafaela (nome fictício), de 23 anos, natural de Guarulhos (SP), passou no programa de estágio da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em meados de 2015, mas negou a oportunidade porque descobriu que estava enfrentando uma gravidez de risco. Em 2016, todavia, ela participou do processo seletivo para trainee, mas não conseguiu avançar nas análises de currículo. “Cheguei a conversar com uma responsável pelo RH e ela disse que, assim que tivesse uma oportunidade, me chamaria pelo LinkedIn”, lembra. “Quando enviei meu currículo para a tal vaga, ele não passou nem na triagem. Seu filho, hoje, está com 1 ano e 2 meses e só agora Rafaela está conseguindo, aos poucos, voltar ao mercado. “Isso porque eu mudei completamente o foco de atuação, de psicologia organizacional para clínica.” De acordo com a advogada Ana Paula Braga, do escritório Braga e Ruzzi, em São Paulo, nesse caso, o interessante é fazer uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho. “O MPT pode averiguar e inclusive tem poderes para aplicar multas”, ressalta. Vale lembrar que, pela legislação, a mulher não é obrigada a informar sobre a gravidez no processo seletivo.
O relato de Joyce (nome fictício), de 30 anos, demonstra que atitudes discriminatórias também podem vir de onde menos se espera. Formada em letras, com experiência internacional em marketing, ela trabalhou como revisora numa agência de conteúdo publicitário em São Paulo até descobrir que estava grávida. Detalhe: o diretor da empresa é o pai de seu filho, que hoje tem 9 meses. “Ele me disse que havia perdido o cliente que eu atendia. Como eu era PJ, fui demitida e recebi apenas o acerto referente aos dias trabalhados naquele mês”, explica. “Eu tinha acabado de alugar um apartamento, mas, com a demissão, tive de entregar e, ainda, pagar multa. Fiquei sem nada e precisei voltar para a casa dos meus pais, no interior do estado.” As portas se fecharam para a profissional, e, a cada entrevista de emprego, aumentava o sofrimento. “Diziam que não podiam assumir uma estabilidade de dois anos.” Joyce consultou um advogado e está em vias de entrar com um processo na Justiça para que a agência reconheça o vínculo trabalhista e lhe garanta todos os direitos.
Entre 2014 e 2016 ocorreram 25 634 novos casos envolvendo gestantes na Justiça do Trabalho de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, conforme levantamento da Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do Trabalho (CEST). Ainda assim, muitas mulheres, nessas circunstâncias, preferem se calar. Executiva da área social do setor de mineração, a mineira Raquel (nome fictício), de 46 anos, viu seu currículo de vinte anos de experiência ser massacrado quando resolveu adotar uma criança. “Não estava nos meus planos, até que eu conheci minha filha no programa de voluntariado da empresa em que eu trabalhava. Me apaixonei na hora”, recorda. No início, ela recebeu o apoio dos seus gestores, mas, assim que deu entrada ao processo de adoção, a coisa mudou de figura. Pela legislação, as mães adotivas possuem exatamente os mesmos direitos que as mães biológicas. “Cheguei a dizer que eu não precisava sair de licença, que poderia trabalhar remotamente, já que eu tinha toda a infraestrutura em casa.” O apelo não foi considerado, e Raquel foi obrigada a tirar a licença-maternidade. Passados dois meses, a conta do seu e-mail foi desligada e a profissional soube, por colegas de trabalho, que já havia outra pessoa em seu lugar. “Fiquei sabendo que eu não retornaria. Disseram que a adoção era uma opção pessoal e por isso eu teria de arcar com as consequências.”
Raquel recebeu a indenização, mas, quase um ano e meio depois, continua desempregada, prestando serviços como PJ, embora seu currículo contenha pós-graduação pela PUC-Minas, MBA pela Fundação Getúlio Vargas e mestrado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Tudo isso me abalou muito, principalmente porque minha carreira foi construída na área de responsabilidade social”, declara. “O objetivo é o lucro, muito se prega e pouco se pratica. Hoje, quero trabalhar para uma empresa que tenha a real intenção de ser transformadora.” A despeito da injustiça, a passagem pela companhia foi um fenômeno na vida da executiva. “Ela me colocou no caminho da pituca”, diz, referindo-se à filha, que completou 2 anos e meio ao lado dos pais adotivos.
3 perguntas para Sofia Vilela de Morais e Silva
Procuradora do Trabalho e vice-coordenadora da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Discriminação no Trabalho – COORDIGUALDADE, do Ministério Público do Trabalho (MPT)
Por que é tão comum a discriminação de gestantes no mercado de trabalho?
Toda a nossa legislação visa a proteger não só a mulher, mas a própria criança. E, ainda assim, existe a discriminação. Para os empregadores, a gravidez não é vista como algo normal ou natural, mas como um obstáculo ao comprometimento da mulher com a empresa. Sua dedicação é posta em xeque quando ela engravida.
Persiste a noção de que a mulher é uma figura sensível, que vai dar prioridade à família?
Temos que romper com esse preconceito de que a função de cuidar de um filho é inerente à mulher. Você preserva a questão biológica, porque é a mulher quem vai engravidar e amamentar, mas, fora isso, é responsabilidade de todo o círculo familiar, dos pais aos avós. Precisamos mudar a mentalidade.
De que maneira?
Denunciando, sempre. O MPT tem um sistema de recebimento de denúncias, e elas podem ser sigilosas. Não podemos admitir que empresas tenham atitudes discriminatórias. Por essa razão é tão importante o empoderamento. A mulher tem de ter consciência de que o fato de poder engravidar não a inferioriza. Pelo contrário, justamente por isso ela precisa ser valorizada e preservada.