Por Rafaela Matias – Basta uma câmera na mão e um pouco de desenvoltura para criar uma conta no YouTube e inaugurar o seu próprio canal. Sim, é tão simples quanto parece. Bem diferente das complicações dos cursos de teatro para formação de atores mirins e das agências de modelos, velhos conhecidos dos pais que veem potencial em seus filhos.
A simplicidade da plataforma, a princípio voltada para maiores de 18 anos, vem atraindo uma legião de crianças a fim de consumir vídeos ou até mesmo produzir os seus próprios conteúdos. Um estudo desenvolvido pela pesquisadora Luciana Corrêa, coordenadora do ESPM Media Lab, Laboratório da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) que investiga as principais transformações na comunicação contemporânea e na cultura digital, buscou mapear esse acesso e revelou uma tendência de crescimento exponencial nos canais infantis da plataforma. Realizada anualmente, a pesquisa “Geração YouTube: um mapeamento sobre o consumo e a produção infantil de vídeos para crianças de zero a 12 anos no Brasil” teve início em 2015 e os números da última edição foram divulgados com exclusividade à Canguru. Alguns deles chamam a atenção. Entre os 100 maiores canais da plataforma existentes atualmente no Brasil, 52 são infantis, incluindo youtubers mirins e teens, minecraft, vídeos educativos e outras categorias (veja os números de acessos por categoria no quadro).
Ao todo, o estudo mapeou que existem atualmente cerca de 200 canais de youtubers mirins em que estrelam crianças de zero a 12 anos, além de outros 300 que oferecem conteúdos voltados para baixinhos, ultrapassando os 120 bilhões de visualizações. “Os números dobraram desde a última pesquisa. Os resultados publicados no ano passado mostravam um número de visualizações de 61 bilhões. Hoje já são 120 bilhões”, ressalta Luciana.
Cada vez maiores
Confira os números e os últimos dados mostrados pela pesquisa “Geração YouTube: um mapeamento sobre o consumo e a produção infantil de vídeos para crianças de zero a 12 anos no Brasil”.
Canais mapeados
2015 – 110 canais
2016 – 230 canais
2017 – 500 canais*
Total de visualizações
2015 – 20 bilhões de visualizações
2016 – 50 bilhões de visualizações
2017 – 120 bilhões de visualizações
Crescimento por categoria de 2016 para 2017
• Unboxing (vídeos que mostram a prática de abrir caixas e embalagens de brinquedos): de 7 para 12 bilhões;
• Youtubers mirins (vídeos apresentados por youtubers crianças, de 0 a 12 anos, com ou sem um adulto junto): de 7 para 20 bilhões;
• Youtubers teens (vídeos com youtubers teens. Essa categoria, em boa parte, migrou de um canal de game infantil para um de assuntos gerais e importou a audiência que envelheceu junto com o youtuber e mudou seus interesses): de 4 para 22 bilhões;
• Minecraft (canais relacionados ao jogo, com dicas e experiências): 26 para 30 bilhões;
• Não TV (conteúdos de animação, que estão principalmente dentro do YouTube Kids): 7 para 13 bilhões;
• TV (conteúdo exibido na televisão convencional, que é reproduzido no YouTube): 10 para 16 bilhões;
• Edu (categoria de educação): 1 para 2 bilhões.
Profissão youtuber
O acesso é tanto que a profissão de youtuber já foi consagrada e não para de produzir novas celebridades. Uma delas é Marco Túlio, do canal AuthenticGames. O jovem criou sua conta em 2011, quando tinha 14 anos, para mostrar seus gameplays do jogo Minecraft, e acabou se transformando em um dos mais rentáveis youtubers do Brasil, com 12 milhões e meio de inscritos e mais de 5 bilhões de visualizações. “Publiquei o primeiro vídeo sem grandes pretensões, nunca imaginei que tomaria essa proporção. O que começou como uma brincadeira, hoje é a minha carreira”, conta. O sucesso já extrapola os limites da internet e o youtuber faz shows, possui lojas físicas com produtos inspirados em seu canal e foi até tema da decoração de Natal do Minas Shopping, em Belo Horizonte, sua cidade natal, no último ano.
Outro canal que chama a atenção pela popularidade é o da paulista Julia Silva. Aos 12 anos, a garota ostenta 3,2 milhões de inscritos e quase 800 milhões de visualizações. Ela começou a fazer vídeos durante uma viagem com a família para a França, em 2011. “Comecei a gravar os passeios junto com minha mãe e postar para que a nossa família no Brasil visse como era o meu dia-a-dia”, conta a menina. Após 7 anos, o canal se consagrou como um dos maiores da categoria e reúne uma legião de crianças interessadas em vlogs de viagens, brincadeiras e impressões da menina sobre brinquedos, maquiagem, moda e filmes. “Uma das experiências mais marcantes foi quando fomos procurados por uma ONG para realizar o sonho de uma menininha, portadora de uma doença grave, que poderia escolher qualquer coisa e escolheu conhecer Julia. Foi muito emocionante”, conta o engenheiro eletrônico Dreyfus Silva, pai da youtuber. Ele, aliás, é o câmera das gravações e se divide com a esposa, a advogada Paula Queiroz, que edita os vídeos e monitora os comentários. “A Julia ainda não tem idade para utilizar sozinha as redes sociais, por isso tudo passa por nós antes de chegar até ela. É uma forma de protegê-la”, explica o pai.
O sucesso da menina chamou a atenção da escritora Camila Piva, de 36 anos, durante a Bienal do Livro de 2016. A imensa fila de fãs da youtuber se estendia pelo salão e inspirou Camila a escrever um romance sobre esse universo. Lançado no Brasil no ano passado, em coautoria com Julia Silva, o livro Quero ser uma Youtuber conta a história de uma garota em busca de seu sonho e acaba de chegar também ao mercado europeu. “O livro foi sucesso de vendas e percebi que esse assunto também pode ser uma ótima forma de incentivar as crianças no hábito da leitura”, conta Camila. A escritora ressalta ainda que a paixão dos pequenos pelos youtubers e o desejo de se tornarem um deles não é diferente do que já acontecia em gerações passadas. “Crianças gostam de brincar imitando. Eu também gostava de imitar a Xuxa, falava que ia ser apresentadora. A novidade dessa geração é que ela tem a facilidade de querer e realmente fazer. Eles podem criar o próprio canal, sem esperar que uma mídia dê autorização para isso.”
Fora da tela
O alcance dos youtubers mirins é tão grande que surte efeitos importantes no mundo off-line. Aos 14 anos, Nanda Lima, de São Paulo, teve um papel fundamental para o crescimento do mercado de bonecas reborn — aquelas que se parecem com bebês recém-nascidos — no Brasil. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, onde a boneca se popularizou antes de chegar à América Latina, os principais consumidores são adultos. Por aqui, ao contrário, são as crianças as principais adeptas e acredita-se que o canal, com 700 mil inscritos e mais de 90 milhões de visualizações, seja um dos motivos. “A Nanda faz vídeos de cuidados com as bonecas e isso atrai os pequenos para o espírito da brincadeira. Até a Rafinha Justus, filha da Ticiane Pinheiro e do Roberto Justus, entrou em contato pedindo indicações de onde comprar”, conta a mãe, Patrícia Garcia Lima.
Discussões dignas de gente grande também são tratadas nos canais mirins. Com apenas 6 anos, a youtuber carioca Elis MC fala sobre representatividade e autoaceitação. Fã de seus cabelos crespos, ela já atraiu 1 milhão de visualizações para sua
conta no YouTube. “A Elis ama isso, para ela é fácil se comunicar, olhar para a câmera e falar ou dançar. Ela usa a arte e o talento para fazer esse levante infantil a favor da autoestima e da valorização da estética natural. Todas a redes dela fazem parte de um movimento ativista e a imagem quebra muito padrões”, conta a mãe, a produtora cultural Renata Morais. No vídeo que atraiu as atenções da internet para o canal, com 116 mil views, a menina é enfática: “Meu cabelo não é ‘peluca’, ele não é liso e eu só uso ‘cleme’ se for pra deixar ele pro alto”.
Outra que utiliza a internet para quebrar paradigmas é Amanda de Carvalho, de 13 anos. Surda de nascença, ela foi oralizada por meio de um trabalho multidisciplinar e, hoje, é capaz de se comunicar perfeitamente através da fala. “Foi uma opção de comunicação que eu escolhi pra ela assim que soube da deficiência, ainda recém-nascida, e descobri que surdos também podem aprender a falar se houver um atendimento adequado, muita terapia e esforço da família e da criança”, conta a gestora de RH e fonoaudióloga Sheila Carvalho, mãe da youtuber. Aos 6 anos, a garota conheceu o YouTube e passou a acompanhar vídeos de crianças como ela. “Pedi pra minha mãe para criar uma conta para mim e, após 2 anos de insistência, ela deixou. Eu adoro quando meus seguidores descobrem que sou surda e mesmo assim falo como qualquer criança ouvinte, pois essa informação é muito importante e ajuda muitas crianças com deficiência. É uma responsabilidade ser comunicadora”, afirma Amy, como gosta de ser chamada. Hoje, a menina compartilha a sua rotina e novas experiências com as quase 500 mil pessoas inscritas em seu canal. “A parte mais legal é levar informação, mostrar que uma criança surda profunda congênita é capaz de ter uma vida totalmente compatível com o mundo ouvinte e aproveitar tudo o que os sons oferecem. Por meio do canal, nós já ajudamos centenas de famílias”, conclui Sheila.
E a segurança?
Para a pesquisadora Luciana Corrêa, responsável pela pesquisa “Geração YouTube: um mapeamento sobre o consumo e a produção infantil de vídeos para crianças de zero a 12 anos no Brasil”, a Google, detentora do YouTube, vem se esforçando para adequar a plataforma à nova realidade e deve continuar tomando providências para proteger o inegável público mirim. “Mesmo sendo uma plataforma para maiores de 18 anos, não dá para ignorar que mais da metade da audiência é formada por crianças. O YouTube Kids foi uma tentativa de solucionar isso, separando adultos de crianças, mas como ele contempla apenas os bem pequenos, ainda há um buraco a ser preenchido”, defende. Segundo ela, há um movimento constante da empresa em relação ao combate a conteúdos pornográficos, mas também é preciso regulamentar melhor o espaço para publicidade considerando os pequenos. A reportagem procurou a Google para se posicionar sobre o assunto, mas a empresa não respondeu até o fechamento desta edição.
Outro ponto de atenção é a busca constante pela aceitação, que pode passar dos limites se não houver um olhar atento dos pais em relação ao mundo virtual. “A busca pela aprovação faz parte do processo de desenvolvimento da criança e do adolescente, mas no mundo dos ‘likes’ pode ficar intensa demais. Devemos observar o impacto deste envolvimento e ver se as frustrações, críticas e rejeições estão sendo bem administradas”, orienta a psicóloga Juliana Aragão, especialista em crianças, adolescentes e famílias. De acordo com a especialista, é preciso explicar para os pequenos que a vida é maior que o mundo virtual e existem outros meios para se sentir querido e aceito, além do número de seguidores ou de visualizações.
Na mira da lei
Em setembro de 2016, o Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais entrou com uma ação civil pública contra a União e contra a Google Brasil pedindo a proibição de vídeos no YouTube que incluam a publicidade de produtos e serviços destinados ao mercado infantil. Na época, o órgão alegou que era frequente a exibição de vídeos protagonizados por crianças descrevendo aos seus seguidores os brinquedos, roupas e outros itens que ganham de diversas marcas e lojas. O ato desafiaria a legislação brasileira e as resoluções do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que proíbem a publicidade na forma de merchandising protagonizada por crianças ou a elas destinada, por ser considerada potencialmente abusiva. “O público infantil é altamente suscetível a qualquer tipo de apelo emotivo e subliminar. As crianças não têm maturidade suficiente para discernir entre fantasia e realidade ou para resistir a impulsos consumistas”, disse o procurador da República Fernando de Almeida Martins, autor da ação, em entrevista na época.
O pedido do Ministério Público Federal foi negado pela Justiça no ano passado, mas o órgão recorreu e agora aguarda uma posição do Tribunal Regional Federal em Brasília. Em nota enviada à Canguru na ocasião, o Google informou que o YouTube é uma plataforma destinada a adultos e que “o uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável”.
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